sábado, 15 de outubro de 2011

OS SINAIS DOS DISCÍPULOS DE JESUS (Mc 16,17-18)

Bruno Glaab



Introdução

Diversas vezes deparei-me com pessoas, até certo ponto desconfiadas com a sua própria igreja, pois julgavam que algo estava falho. Tudo isto deve-se ao fato de certas igrejas operarem sinais que geralmente as igrejas mais históricas não realizam, como curas, expulsão de demônios, falar em línguas, etc. De fato, no Novo Testamento há referência a tais sinais que seriam operados pelos verdadeiros discípulos. Jesus recomendou uma série de sinais a seus seguidores antes de se despedir, em sua forma física.

“Estes são os sinais que acompanharão os que tiverem crido: em meu nome expulsarão demônios, falarão em novas línguas, pegarão em serpentes, e se beberem algum veneno mortífero, nada sofrerão; imporão as mãos sobre os enfermos, e estes ficarão curados”(Mc 16,17-18).

De fato, nas igrejas mais históricas não é muito comum se ouvir falar em expulsar demônios, nem tampouco fazer curas, ainda que atualmente existem movimentos que tentam trazer de volta estas práticas um tanto arcaicas. Nas igrejas de cunho pentecostal estas práticas são comuns, quase cotidianas. Seria isto um sinal de que nas igrejas históricas a ação de Jesus não se faz presente? Não estariam nelas os verdadeiros discípulos de Jesus? Expulsão de demônios, curas pelas mãos, falar em línguas e a imunidade diante do veneno e das serpentes não estariam sendo praticados pelas igrejas que, supostamente não seriam fiéis a Jesus.


1) Visão mítica dos sinais

Jesus, ou mesmo as comunidades onde os evangelhos se formaram, expressam-se com a linguagem cultural de sua época[1]. Esta linguagem, como toda a linguagem, vem marcada com os valores e conceitos culturais inerentes ao seu momento histórico. Hoje é mister tirar o véu da linguagem mítica para penetrar no cerne da questão. O que Mc 16,17-18 queria ensinar para os discípulos? Convém fazer uma análise de cada fenômeno destes:

a) Expulsar demônios[2]

Numa época em que não se tem nenhuma explicação científica para os males que afligem a humanidade, assim como doenças, deficiências físicas e mentais, pobreza, ódio, brigas, etc. era praxe atribuir tais infortúnios ao demônio. Na cosmovisão de então, tais males só podiam vir do maligno. Basta lembrar aqui a indagação dos discípulos de Jesus diante do cego: “quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?”(Jo 9,2). Desconhecendo completamente as causas que ocasionam a cegueira, cabia uma explicação mítica.


b) Falar em línguas

Em muitos textos do Novo Testamento se afirma o fenômeno da Glossolalia[3], ou seja, sob inspiração do Espírito Santo as pessoas falavam em línguas (At 2,1-13; At 10,44ss; 1Cor 12,10; 1Cor 14,1ss, etc. No entanto, é de se notar que também aqui estamos em terreno simbólico. O fenômeno da glossolalia era oriundo dos cultos pagãos[4], quando os coríntios se soltavam em louvores frenéticos diante de Dionísio, Baco e Diana. Quando alguns destes fiéis passaram para o cristianismo, trouxeram seus ritos juntos. São Paulo não gosta muito destes barulhentos orantes, mas não os condena (1Cor 14,1ss). No entanto, Paulo faz ver que acima de tal prática está a profecia e principalmente o amor. Chega a dizer que, se falasse todas as línguas, mas se não tivesse amor, nada seria (1Cor 13,1ss). Em At 2,1-13 este fenômeno é usado por Lucas, de forma simbólica, para ilustrar a nova realidade daqueles que agem em nome do Espírito Santo. Eles são missionários universais. Anunciam o evangelho a todos os povos e todos se entendem[5]. O que não acontecia com o exclusivismo farisaico, que separava os estrangeiros. Falar línguas é, antes, a prática da justiça para com todos os povos que se congregam em Cristo[6], no espírito Santo. É a evangelização universal, sem exclusão.


c) Imunidade ao veneno das serpentes

Há poucos anos foi noticiado na imprensa que um grupo de fanáticos, nos Estados Unidos, brincou com serpentes venenosas, na certeza de não sofrer com os males de seu veneno. Quando, no entanto, um deles foi mordido, teve de ser levado às pressas ao hospital e, por pouco não pereceu. A serpente de que fala o evangelho de Marcos não é a cobra venenosa, mas antes, devemos aqui pensar na serpente de Gn 3 que enganou Eva. Novamente estamos diante de uma forma literária mítica[7]. Aqui está o símbolo da monarquia do Egito e ao mesmo tempo da idolatria. Ou seja, quem enganou Eva não foi uma cobra falante, foi antes, a monarquia (1Sm 8,10ss) que se instalou em Israel e a idolatria que entrou devido às muitas mulheres de Salomão (1Rs 11,1-9). Também Paulo enfrentou uma serpente, quando estava sendo conduzido para Roma (At 28,3ss). O relato diz que Paulo nada sofreu. Trata-se também aqui de algo diferente do que do veneno de um ofídio. Antes, Paulo, um homem de Deus, ficou imune diante da grandeza do Império Romano e da religião que não reconhecia Jesus como o Filho de Deus. Ainda que de fato o Império Romano o assassinasse em Roma, Paulo não se dobrou diante de seu fascínio. O cristão, segundo Mc 16,17-18, não pode se deixar seduzir diante da serpente dos sistemas enganadores que desviam as pessoas da verdade.


d) Imposição das mãos

Hoje é muito difundido, até entre os cristãos, a prática da imposição das mãos com um sentido de curas. Tal prática também é atestada por Paulo (1Cor 12,4ss). Não se quer aqui entrar em questões como provar ou desaprovar o poder da mente, das mãos, etc. Isto cabe à parapsicologia e não à teologia bíblica. Apenas aqui se quer evidenciar que, quando Marcos fala da cura pelas mãos, ele tem outra idéia, pois a paranormalidade não está ao alcance de todos e o evangelho diz que todos aqueles que crêem o farão. Além do mais, os fenômenos paranormais nada tem a ver com fé, no sentido cristão. Pode, muito bem, uma pessoa atéia ter tais fenômenos e outra pessoa de muita fé não tê-los. Impor as mãos, segundo o evangelho é símbolo do agir, da bênção e da intercessão[8]. Ou seja, quem anuncia o evangelho deve agir com solidariedade. Nem todos podem fazer curas num sentido mágico ou milagroso, mas todos os que crêem em Jesus Cristo necessariamente devem agir (as mãos são símbolo do agir) em favor dos doentes, deficientes e de toda espécie de excluídos.


2) Os sinais que acompanham os cristãos

Uma vez visto que os sinais encerram uma simbologia condicionada pela cultura de seu tempo, pode-se, agora desvendar o imperativo de Mc 16,17-18. Para ser um discípulo verdadeiro de Jesus, não é necessário tentar expulsar demônios aos berros de: “em nome de Jesus, sai demônio!” Nem tampouco é preciso entrar em transe e dizer coisas desconexas como se estivesse falando em línguas. Menos ainda é preciso se expor ao veneno das cobras. E, mesmo não tendo dons paranormais de cura, pode-se ser fiel ao mandado de Jesus que pede que se imponha as mãos. Antes de pensar em milagres é preciso viver um compromisso. Aquele ou aquela que tem uma fé verdadeira em Jesus ressuscitado necessariamente deve lutar contra o mal em suas mais variadas formas (expulsar demônios), ainda que não grite ”sai demônio!”. A luta contra o mal é condição evidente. Quem anuncia Jesus e não tem compromisso na luta contra o mal cai no vazio. Ter fé também não requer falar línguas novas, mas exige falar a língua do amor (1Cor 13,1ss), aquela que não permite a exclusão do estrangeiro, do pobre, do deficiente, etc. Ter fé exige agir de tal maneira que todos se entendam, mesmo aqueles que vivem em outras culturas. Ser seguidor de Jesus não autoriza ninguém a se expor à fúria das cobras, antes, exige que não se contamine com as serpentes dos sistemas, da ideologia e da idolatria de hoje. Ser fiel a Jesus não exige fazer milagres com as mãos, exige antes, pôr as mãos a serviço dos doentes, ou seja, não é possível que um fiel seguidor de Jesus seja indiferente diante do sofrimento de tantos seres humanos que vivem à margem de tudo.


Conclusão

Seria muito fácil ser seguidor de Jesus se este desse aos discípulos poderes milagrosos e se não exigisse mais nada dos seus. Para saber se hoje, estamos no caminho certo, não precisamos procurar por sinais milagrosos. Hoje, como nos tempos da redação do evangelho de Marcos, é preciso se perguntar: a partir de nossa fé, lutamos contra o mal (demônios)? Falamos a linguagem do amor, fazendo com que todas as raças, culturas e grupos se encontrem (falar línguas)? Somos imunes às ideologias que diariamente as serpentes (ideologias) de hoje nos injetam na cabeça? Nossa fé nos leva a agir em prol dos doentes e marginalizados?

Os sinais que acompanham aqueles que crêem são o compromisso do discípulo de sempre se confrontar novamente e perceber se a fé muda nossa vida ou se somos como certos politiqueiros, cujo discurso está longe da prática. O cristão não pode separar o discurso (anúncio de Jesus) da prática. Quem anuncia Jesus deve assumir o compromisso pela vida. Isto é expulsar demônios, falar línguas, ficar imune ao veneno das serpentes e curar com as mãos. Cabe, no entanto, aos discípulos de hoje descobrir quem são os demônios a expulsar, quais as línguas a falar, quais as serpentes a enfrentar e quais os benefícios que as mãos devem trazer.

Por um lado, parece até que esta visão nos traz um conforto, já que não nos é exigido ter qualidades paranormais para sermos aut6enticos discípulos de Jesus. Por outro lado, esta visão nos deixa ruborizados, pois percebemos que temos uma missão mais complexa. Como não se trata de dons sobrenaturais ou paranormais, o texto nos envia ao compromisso crítico diante da realidade desafiadora de hoje. Não é preciso fazer milagres, mas é preciso fazer algo mais. Ter postura crítica diante do mal, usar a linguagem do amor comprometedor que nos impulsiona ao encontro de todos os povos, abrir os olhos diante da ideologia enganadora de hoje (Neoliberalismo, Nova Era, religião alienada, etc.), bem como estar sempre agindo a favor dos excluídos. Isto requer algo mais do que fazer milagres. Exige uma postura crítica em constante atualização. Portanto, um cristão que se fecha diante da realidade, que ignora os mecanismos de opressão e de injustiça, nunca será um verdadeiro discípulos de Jesus, ainda que reze muito e fale muito no nome de Jesus.


BIBLIOGRAFIA

BARBAGLIO, G. 1-2 Coríntios. São Paulo: Paulinas, 1993

BULTMANN, R. Mitologia y Nuevo Testamento. In: Ediciones de la Revista Mapocho. Madrid, Tom. IV, n.1, Vol. 10, 1965

COMBLIN, J. Atos dos Apóstolos. Petrópolis/S. Bernardo do Campo/S. Leopoldo: Vozes/Medotista/Sinodal, 1988, Vol. I

POHL, A. Evangelho de Marcos ­ - Comentário esperança. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998

RICHARD, P. O movimento de Jesus depois da ressurreição – Uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1999

SCHWANTES, M. Projetos de esperança ­ - Meditações sobre o Gênesis 1-11. Petrópolis/Rio de Janeiro/São Leopoldo: Vozes/Cedi/Sinodal, 1989

[1] BULTMANN, R. Mitologia y Nuevo Testamento. p149ss.
[2] Ver GLAAB, B. Expulsar demônios é possível, mas não é tão fácil. In: Cadernos da Estef. n. 21, 1998/2, p.43ss.
[3] COMBLIN, J. Os Atos dos Apóstolos. Vol. 1, p. 87ss.
[4] BARBAGLIO, G. 1-2 Coríntios. p.79
[5] COMBLIN, J. Op. Cit. p.90-91.
[6] RICHARD, P. O movimento de Jesus depois da ressurreição. P.39ss.
[7] SCHWANTES, M. Projetos de esperança. p.81.
[8] POHL, A. Evangelho de Marcos. p.465.

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