segunda-feira, 6 de maio de 2013

Segunda, 06 de maio de 2013

''Eu sou o Senhor teu Deus'': o Decálogo e sua evolução

Fonte: IHU
Tábuas da Lei, Mandamentos, Decálogo: são expressões diferentes para indicar os preceitos que Moisés recebeu no Monte Sinai, base da aliança entre Deus e Israel. O termo mais usado em dicionários e repertórios, Decálogo, em grego significa dez (déka) palavras (lógos). Um costume – aceito embora não filologicamente irrepreensível – gosta de traduzi-lo com a locução "Os Dez Mandamentos". Mas há uma razão, e ela deve ser buscada no fato de que, em hebraico, "palavra", davar, é sinônimo de mandamento.
A reportagem é de Armando Torno, publicada no jornal Corriere della Sera, 03-05-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Moisés permaneceu "com o Senhor 40 dias e 40 noites, sem comer pão nem beber água" (Êxodo 34.28). Hoje eles são considerados como referências jurídicas e éticas, além de religiosos; constituem o código moral de grande parte da humanidade. Ou, nas palavras de Hermann Cohen, fundador da escola de Marburgo e figura proeminente do neokantismo, podem ser entendidos como uma espécie de equação absoluta dada ao ser humano (em Escritos Hebraicos, Berlim, 1924).
Na Bíblia, encontram-se duas versões, com leves variações, das "dez palavras". Leem-se no Êxodo (20, 1-17) e no Deuteronômio (5, 6-21). A tradição católica, ao apresentá-las, se distancia dos judeus e evangélicos. Ainda Agostinho havia realizado uma distinção no Decálogo, que deixou um rastro duradouro: ele dividiu os três Mandamentos iniciais dos sete sucessivos, atribuindo aos primeiros os deveres para com Deus e, aos sucessivos, os para com os seres humanos.
Mas tais considerações continuaram durante séculos. Para oferecer um exemplo disso, um filósofo e teólogo como Duns Scotus, o Doctor Subtilis que morreu em Colônia em 1308, defendia que os Mandamentos da segunda tábua, ou seja, do quarto ao décimo, não deveriam ser considerados inerentes à lei natural (em Reportata parisiensa, reiterando em Scriptus Oxoniense). Por outro lado, Tomás de Aquino, que aborda o assunto na Summa Theologica, está convencido de que todos os preceitos do Decálogo pertencem à lei da natureza.
A transcrição do texto das Tábuas relatado nos catecismos católicos é fruto de intervenções amadurecidas ao longo do tempo. Significativas são a contribuição de Afonso Maria de Ligório e a influência que ele exerceu a partir do século XVIII. O santo de Nápoles entendeu os Mandamentos como o sumário da teologia moral: por esse motivo, ele tentou compendiar em cada proposição um aspecto da vida.
O caso mais evidente está no sexto mandamento, "não cometerás adultério". Ele preferiu o mais amplo "não cometerás atos impuros". Santo Afonso desejava investir sobre toda a sexualidade. Ele mesmo, por outro lado, observou regras muito rígidas para tratar dessa matéria: é conhecido que ele escreveu as páginas sobre a moral matrimonial, presentes na sua obra, de joelhos para não cair em tentação.
Pode-se afirmar que toda época precisou repensar e fazer reviver os Mandamentos no seu próprio tempo. Gianantonio Borgonovo, biblista e autor do livro Torah e storiografie dell'Antico Testamento (Ed. Elledici, 2012), nos confidenciava, a propósito das atuais releituras: "A retomada dessas reflexões encontra sentido no valor da mitzwà, ou seja, de uma tensão entre o amor de Deus que precede ('Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa dos escravos...') e o amor que segue ao próprio Mandamento e que se torna lei, sentença, decreto". Para esse hebraísta, o Decálogo tem em si uma espécie de energia infinita, que, "de um lado, vai até a revelação original do Sinai (Horeb) e, de outro, pede para ser atualizada todas as vezes hoje".
Agora, voltam à distribuição I Comandamenti, publicados desde 2010 (Ed. Il Mulino). São comentados, explicados, revividos por teólogos, filósofos, biblistas, mas também por economistas e juristas (Non Rubare, oitavo volume, é tratado por Paolo Prodi e Guido Rossi).
O primeiro deles, Io sono il Signore Dio tuo [Eu sou o Senhor teu Deus], palavras que introduzem as Tábuas da Lei, é assinado por Piero Coda e Massimo Cacciari. O percurso traçado parte da semântica do Nome para chegar às reflexões sobre o Deus-Trinitas. De um lado, examina-se, dentre outras coisas, a autoapresentação de Deus em Êxodo 3, 14: "Eu sou aquele que sou" (ehjeh asher ehjeh), e que Piero Coda mostra nas diversas interpretações, não excluindo aquela que nasceu a partir da versão grega da Bíblia dos Setenta (ego eimi ho on: seria possível traduzir até como "Eu sou o Ser").
Por outro lado, pergunta-se quem é "o Uno do Êxodo". Nesse caso, Massimo Cacciari indica caminhos que ajudam o leitor a se aproximar do "segredo do Nome divino", mesmo que permaneça "inapreensível e inefável". "Não interessa tanto o Nome – escreve – mas sim o que o Ser de Deus pode. A sua natureza é ser, não ser nomeado, e ser pondo para 'fora' de si todo o seu próprio poder".
Às margens de Coda e de Cacciari, notamos que, para melhor compreender o significado da frase "não terá outros deuses diante de mim" (Êxodo 20, 3; Deuteronômio 5, 7), a primeira ordem de Deus no Decálogo, é aconselhável confiar-se a uma consideração de Martin Buber: "A doutrina da unicidade tem a sua razão vital não no fato de que formemos um juízo sobre o número de deuses que existem e se busque talvez verificá-lo, mas sim na exclusividade que sustenta a relação de fé, assim como ela sustenta o verdadeiro amor entre homem e homem; mais exatamente: no valor e na capacidade total inerentes no caráter exclusivo... A unicidade do 'monoteísmo' não é, portanto, a de um 'exemplar', mas é a do parceiro na relação interpessoal, até que esta não seja renegada no conjunto da vida vivida" (Königtum Gottes, Obras II, Munique, 1964).
Por isso, não é insensato acreditar que o conceito fundamental expresso por esse primeiro Mandamento seja de caráter existencial: é uma escolha radical que guia a vida. Por outro lado, a sugestão de Buber nos ajuda a compreender melhor a tradução das palavras "al-panaj", que poderiam ser traduzidas como "além de mim", "diante de mim", "ao meu lado", "contra mim", "para a minha vergonha", e mais, levando-nos até mesmo para longe do mandamento de Deus.
Lembremos, por fim, que essa série de comentários sobre as Tábuas da Lei é de 11 volumes e não de 10. O último, Ama il prossimo tuo (Enzo Bianchi e Massimo Cacciari), é dedicado ao Mandamento cristão por excelência, já presente, porém, no Levítico: "Não seja vingativo, nem guarde rancor contra seus concidadãos. Ame o seu próximo como a si mesmo" (19, 18). Com Cristo, ele se torna a síntese das leis que falam da relação com o outro. O Evangelho de João relata: "Este é o meu mandamento: amem-se uns aos outros, assim como eu amei vocês" (15, 12). Paulo, na Epístola aos Romanos, especifica: "De fato, os mandamentos: não cometa adultério, não mate, não roube, não cobice, e todos os outros mandamentos se resumem nestas palavras: 'Ame o seu próximo como a si mesmo'" (13, 09).

sábado, 30 de março de 2013

 Num papado para o povo, uma “Teologia popular”. Artigo de José María Castillo

FONTE IHU

Sábado, 30 de março de 2013
Junto ao esforço de pensar os desafios de uma teologia adequada para os dias atuais, o teólogo José María Castillo destaca as qualidades do papa Francisco. Segundo Castillo, “o que mais chama a atenção é a sua desconcertante simplicidade, sua bondade, sua proximidade em relação a todos e, sobretudo, sua insistente preocupação declarada em recuperar uma Igreja pobre ao serviço do povo, especialmente dos povos mais necessitados da terra”. Seu artigo é publicado no blog Teología sin Censura, 27-03-2013. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

1. A raiz da crise da Igreja

Não parece que ser nenhum exagero afirmar que, nas últimas décadas, jamais se havia falado tanto da crise da religião e, mais concretamente, da crise na Igreja. Porém, num assunto tão delicado e tão grave como este, não basta se lamentar de escândalos e do dano que provocam os que os cometem. É claro, é importante saber o que ocorre, se é que queremos de verdade apresentar remédio e cortar o mal. Entretanto, se nos limitamos isso, o mal não é cortado. O que importa de verdade é ir diretamente à raiz da crise. Onde está o fundo do problema?

A raiz dos males que afetam a Igreja não está no Vaticano. Nem está na Cúria e nos escândalos que, segundo dizem, ali ocorreram. A raiz da crise que a Igreja sofre está na teologia que legitima um sistema de organização e de governo que, por múltiplos motivos, tolerou e, de fato, permitiu que a gestão das coisas ocorresse de forma que chegamos onde estamos.

É claro, seria injusto e falso afirmar que apenas a teologia, que se costuma ensinar (a que é permitida ensinar) nos seminários e centros de formação religiosa, é a responsável da crise que a Igreja sofre. Uma crise, como esta que padecemos, é motivada por múltiplas e variadas causas, que aqui não é possível enumerar e, menos ainda, analisar. Contudo, não esqueçamos que estou falando apenas da raiz. E essa raiz, insisto, na minha maneira de ver, está na teologia que estão aprendendo os que se preparam para o sacerdócio em seminários, centros de estudos superiores ou de formação catequética e similares.

Um exemplo trará alguma luz sobre o que estou tentando explicar. Refiro-me ao fracasso da disciplina de religião. Na Espanha, pelo menos, a Conferência Episcopal conseguiu que se matriculem uma notável maioria das crianças, adolescentes e jovens, que cursam os estudos prévios para o acesso ao ensino universitário, na disciplina de religião. Pois bem, o que chama a atenção e não é fácil explicar é que a grande maioria dos meninos e meninas, que durante anos assistem as aulas de religião, assim que passam da adolescência, mostram-se indiferentes diante do fato religioso, às vezes contrários a ele e, em não poucos casos, abertamente ateus e distantes da Igreja.

Às vezes, os homens da Igreja despacham este problema afirmando que os jovens se viciaram, que a secularização e o laicismo os perverteram, que os professores não estão à altura das circunstâncias, que as famílias não ajudam, etc., etc. Muito bem, certamente a Igreja jamais teve tantas dificuldades para ensinar a religião, nos planos de ensino, como vem tendo desde há bastante anos. Os bispos colocam e tiram os professores. Os bispos decidem os livros-base que são admitidos e os que não são tolerados. Isto sem falar da importante subvenção econômica e dos privilégios fiscais que a Igreja recebe dos poderes do Estado. Colocado isto, não há mais remédio para procurar. O que falha aqui? Não será por que os conteúdos oferecidos na disciplina de religião não são integrados pelos alunos?

Os estudos mais conscienciosos, feitos sobre este assunto, apresentaram como resultado que as meninas e meninos, que assistem às aulas de religião, assimilam (numa notável maioria) os conteúdos que nela recebem até os doze anos, com as lógicas e inevitáveis variáveis daqueles que se adiantam a este fenômeno ou daqueles que o vivem com certo atraso de tempo. Porém, o fenômeno é constante: por volta dos 12-13 anos, uma notável maioria dos alunos rompe com o que ouve na aula de religião. O que lhes é dito em religião, deixa de interessá-los. Não é que eles sejam contra o que o professor lhes diz, exceto nas usuais excepcionais que confirmam a regra. Não se trata do fato de estarem a favor ou contra. O problema está em que a temática da religião não os interessa, nem diz praticamente nada para eles.

Como é lógico, a qualquer um ocorre pensar que se a religião da escola não interessa, isso está relacionado com a teologia que está por trás da religião da escola. Porque, afinal de contas, o catecismo, o livro-base, os temas de catequese, etc., tudo isso se estrutura e se formula a partir da teologia que se ensina a seminaristas, religiosos e sacerdotes nos centros onde se elabora e se ensina a teologia aceita pela Igreja. Ela é controlada pela Congregação para a Doutrina da Fé e, em cada país, é permitida pela respectiva Conferência Episcopal. Por isso, entre outras coisas, é preciso enfrentar uma pergunta elementar: o que acontece com a teologia na Igreja? Não estará nos conteúdos dessa teologia a razão que explica a profunda crise que nossa Igreja sofre?

2. A “Teologia Popular”, outra forma de fazer teologia

Há duas formas de fazer teologia: a teologia “especulativa” e a teologia “narrativa”. Estas duas formas de fazer teologia já estão presentes no Novo Testamento. O exemplo mais claro de uma teologia marcadamente especulativa é a teologia de São Paulo. Assim como o exemplo mais destacado de uma teologia narrativa se encontra nos evangelhos. Não se trata do fato de que cada uma destas duas formas de fazer teologia seja excludente uma da outra. O problema não está nisso.

Como é natural, a diferença mais evidente está em que, enquanto a teologia especulativa é elaborada baseada em ideias, doutrinas, verdades, dogmas..., a teologia narrativa consiste em relatos que apresentam fatos, ao menos presumidamente históricos, por mais que necessitem da devida hermenêutica, segundo o “gênero literário” em que está redigido cada relato. Não se pode ler da mesma maneira a narração de um milagre e uma parábola, para apresentar um exemplo simples.

Contudo, entre a teologia especulativa e a teologia narrativa que temos na Igreja, existem diferenças que são muito mais de fundo. Diante de tudo, a teologia narrativa, por estar constituída de uma série de relatos, obviamente possui uma “estrutura histórica”. Enquanto que a teologia especulativa, por ser elaborada sobre ensinamentos, doutrinas e especulações, possui uma “estrutura filosófica”. Como acertadamente advertiu Bernhard Welte, no caso da teologia narrativa (histórica), nós nos perguntamos sobre “o que acontece” (ou aconteceu), enquanto que, no caso da teologia especulativa (filosófica), nós nos fixamos em “o que é”. Os verbos “ser” e “suceder” (acontecer) determinam e configuram as duas teologias. Existem pessoas que perguntam: Jesus é Deus? (teologia especulativa). Como existem aqueles (menos) que se questionam: o que acontece onde Deus se faz presente? (teologia narrativa). É que, como qualquer um entende, a teologia especulativa centra sua atenção no “ser”, enquanto a teologia narrativa se interessa, sobretudo, pelo “acontecer”. À teologia narrativa interessa, sobretudo, a “ética” (a conduta, a moral, a forma de viver).

Com isto, chegamos ao fundo do problema. A teologia narrativa (a dos Evangelhos), ao estar situada no âmbito da história, não tem outro remédio a não ser começar se interessando pelo “humano”, o que acontece na história, no espaço e o tempo. É, portanto, uma teologia que se faz “a partir de baixo”. Ao contrário, a teologia especulativa (a de Paulo), por começar se situando fora da história, por essa razão assume como ponto de partida “o divino”, o que não podemos pensar a não ser como “o transcendente”, para além do espaço e o tempo, “a partir de cima”. E é justamente isto o que Paulo fez, já que ele não conheceu o Jesus terreno, mas começou seu itinerário de crente, e seu apostolado, a partir do Ressuscitado, o Senhor da Glória (Rom 1,4). Daí que Paulo explica os fatos históricos mais fortes (por exemplo, a morte de Jesus), não a partir do que aconteceu na Galileia ou em Jerusalém, mas a partir do estremecedor decreto divino, segundo o qual Deus fez a Jesus “pecado” (2 Co 5,21) e “maldição” (Gl 3,13) por nossos pecados e por nossa salvação. Já que, segundo a carta aos Hebreus, “sem derramamento de sangue, não há perdão” (Hb 9,22).

O fundo do problema, portanto, com o qual tropeçamos na teologia especulativa, está em que, de imediato e para começar, nós nos vemos metidos em cheio num âmbito de realidade que nos transcende e que, por isso mesmo, é para nós um conjunto de realidades, de ideias, de problema e possíveis soluções que não entendemos, nem podemos conseguir explicar. Simplesmente porque nos transcendem. Daí que a teologia, a religião e a catequese constituem um conjunto de saberes que para a maioria das pessoas não diz quase nada, nem interessa e nem resolve os problemas que de verdade preocupam a tantas e tantos cidadãos, sobretudo, entre as gerações jovens. Talvez sejam muitos os que ouvem falar de Deus, da Religião e da Igreja como “elementos estranhos à vida”, que alguém (ou algo) pretende introduzir em suas vidas apresentando mais novas complicações do que soluções, para uma vida que já se apresenta muito complicada.

3. A “Teologia Popular”

A proposta que a “Teologia Popular” faz não se limita à tentativa, quase desesperada, de explicar a teologia de sempre, a teologia dominante na Igreja, da maneira como ficou estruturada a partir dos séculos XI e XII. Pretendendo explicar aquela forma de pensamento, de há quase 800 anos, numa linguagem simples, popular e ao alcance de todo o mundo. É evidente que tudo o que se faça, nesse sentido, merece nosso reconhecimento e nosso elogio. Porém, tão evidente como isso, é que, se a Teologia Popular se limita a simplificar a linguagem, mantendo basicamente a mesma estrutura e os mesmos conteúdos, com isso não iremos muito longe. Nem dessa forma repararemos a maior parte dos problemas que muitas pessoas possuem com a Religião e com a Teologia. Então, o que fazer?

A proposta da Teologia Popular consiste em optar decididamente pela “teologia narrativa”. O evangelho de João diz: “Ninguém jamais viu a Deus; quem nos revelou Deus foi o Filho único, que está junto ao Pai” (Jo 1, 18). Isto quer dizer que o Deus transcendente, que jamais vimos, nem podemos ver, que nós não conhecemos, nem podemos conhecer, em Jesus se manifestou a nós. No homem Jesus, que é o Deus “feito carne” (Jo 1,14), ou seja, feito humanidade e, portanto, ao alcance de nossa limitada condição humana. Por isso, Jesus pôde dizer ao apóstolo Felipe: “quem me viu, viu o Pai” (Jo 14, 9). Ou seja, em Jesus nós vemos, escutamos e apalpamos Deus, através da sua forma de vida, nos seus costumes, naquilo que o interessava ou agradava e no que não o interessava e desagradava. Ou seja, é no grande relato dos Evangelhos que conhecemos a Deus, o que Ele nos diz e quer.

Aqui, no entanto, alguns esclarecimentos ainda são importantes. Antes de qualquer coisa, convém levar em consideração que a Teologia Popular não se limita (ou não deve se limitar) a explicar cada texto, cada relato, como sempre foi feito nas aulas de exegese bíblica. É claro, é importante conhecer bem e poder precisar o que dizem (e o que não dizem) os textos dos Evangelhos. Porém, isso não basta. O decisivo é aprender como Deus se “representa” a nós nas narrações que relatam a forma como Jesus viveu e como quis que nós, seres humanos, vivamos. E o que se disse de Deus, é preciso, igualmente, dizer da fé, da salvação, da esperança... De tudo quanto Deus, em Jesus, quis nos dizer e nele descobrimos.

É claro, o assunto capital para a Teologia Popular está nisto: o que a teologia narrativa nos apresenta, que encontramos nos Evangelhos, é o grande relato de um conflito. Trata-se do conflito de Jesus com a Religião estabelecida em seu tempo e na cultura de seu povo. Jesus enfrentou os Sumos Sacerdotes, os Mestres da Lei, os Senadores do povo, o Templo, as normas e tradições... Jesus foi um homem profundamente religioso, como demonstra sua frequente e intensa relação com o Pai do Céu, sua intimidade única com o Pai (Mt 11,27; Lc 10,22), sua insistente oração na solidão dos campos e montanhas, na repetida e constante apresentação do Pai como exemplo e modelo de vida (Mt 5,43-46; Lc 15, 11-32). Entretanto, pelos relatos evangélicos sabemos que a intensa religiosidade de Jesus foi uma “religiosidade alternativa”, ou seja, o determinante da religiosidade de Jesus não foi a fiel observância dos ritos. Para Jesus, mais importante do que a submissão aos ritos, sempre foi a felicidade dos seres humanos, a dignidade das pessoas, a bondade e a proximidade na sua relação com todos os que são maltratados pela vida ou pela sociedade.

Dito isto, é decisivo se dar conta da distância que Jesus sempre manteve na sua relação com a exata observância dos ritos. Não esqueçamos que “os ritos condensam todo o sistema de sinais de uma religião” (G. Theissen). Daí que, neste assunto, é necessário enfrentar o problema do comportamento que, com tanta frequência, caracteriza as pessoas religiosas. Em que consiste este problema? O âmbito primário do comportamento do “homo religiosus” é o “rito”, não é o “ethos”. Ou seja, as pessoas muito religiosas costumam centrar mais sua atenção e seu interesse na exata observância dos ritos do que nas exigências que procedem do Evangelho e que devem se traduzir em bondade, respeito, tolerância e ternura com todos.

Por que esta prioridade do rito sobre o ethos, no homo religiosus? Porque os ritos são ações que, devido ao rigor na observância das normas, constituem um fim em si (G. Theissen). Pois bem, a partir do momento em que isso ocorre, o interesse do sujeito se centra na observância, nas normas básicas que são vinculantes para todos e que constituem o cosmos, a “ordem”, que oferece segurança e liberta do medo do caos, a “desordem”, que se traduz na violência. Esta é a razão pela qual a Religião é “ordem”, enquanto o Evangelho é “desordem”. Jesus, de fato, foi condenado e executado como um subversivo e um agitador (Jo 18, 30; 19, 12; Lc 23, 2. 5). Eis aqui a razão que explica por que pessoas muito religiosas – e não mencionemos os “profissionais” da Religião – com frequência produzem e reproduzem pautas de conduta de uma violência reprimida que não imaginamos. Uma violência da qual quase nunca nós somos conscientes. Entretanto, uma violência que carregamos dentro e da qual não temos nem ideia e, inclusive, nem suspeitamos dela. O Evangelho é uma chave essencial de leitura para a tomada de consciência deste fenômeno tão singular como desconcertante.

4. A Teologia Popular em tempos de um papado para o povo
A eleição do ex-jesuíta argentino Jorge Bergoglio (o papa Francisco), para ser o sucessor de Bento XVI no papado, foi uma notícia inesperada, que está dando muito que falar e pensar. No novo papa, o que mais chama a atenção é a sua desconcertante simplicidade, sua bondade, sua proximidade em relação a todos e, sobretudo, sua insistente preocupação declarada em recuperar uma Igreja pobre ao serviço do povo, especialmente dos povos mais necessitados da terra.

Pois bem, em tempos de um papado para o povo, o mais lógico é que tenhamos uma Igreja para o povo. E se, efetivamente, isto é assim, parece razoável pensar que a teologia que melhor poderá justificar e sustentar uma Igreja assim, será uma Teologia Popular. A teologia que nos invoca constantemente a lembrança de Jesus. A lembrança que nos leva ao caos do Evangelho, a força profética que nos liberta do cosmos da violência que é, de fato, uma incessante e criminosa agressão contra os mais fracos deste mundo.

É verdade e é evidente que, ao assim conceber a teologia e a sua razão de ser na Igreja, persegue-nos o medo de nos desviarmos (ou perder) da “ortodoxia dogmática”. Por isso, parece conveniente terminar esta apresentação da Teologia Popular recordando um texto de J. B. Metz: “A fé dogmática ou a fé confessional é o compromisso com determinadas doutrinas que podem e devem ser entendidas como fórmulas rememorativas de uma reprimida, indomada, subversiva e perigosa memória da humanidade. O critério de seu genuíno caráter cristão é a periculosidade crítica e libertadora, e ao mesmo tempo redentora, com a qual se atualiza a mensagem relembrada, de maneira que ‘os homens se assustem com ele e, não obstante, sejam avassalados por usa força’ (D. Bonhoeffer). As profissões de fé e os dogmas são fórmulas “mortas”, “vazias”, ou seja, inadequadas para a mencionada tarefa de salvar a identidade e tradição cristãs, na memória coletiva, quando os conteúdos que trazem à memória não manifestam sua periculosidade - para a sociedade e para a Igreja! -; quando esta periculosidade se apaga sob o mecanismo da mediação institucional, e quando, como consequência, as fórmulas só servem para a automanutenção da religião que as transmitem e para a própria reprodução de uma instituição eclesial autoritária, que como transmissora pública da memória cristã já não enfrenta a perigosa exigência desta memória”.

Em tempos de um papado em que o Papa dá sinais evidentes de estar disposto a enfrentar esta “perigosa exigência”, a Teologia Popular produz a impressão reconfortante de recuperar sua atualidade.

 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Fonte: IHU

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O resgate da categoria “espírito”

"Não obstante a referida mercantilização do religioso, o mundo espiritual começou a ganhar fascínio embora, na maioria das vezes, na forma de exoterismo e de literatura de auto-ajuda. Mesmo assim ele abriu uma brecha na profanidade do mundo e no caráter cinzento da sociedade de massa. Nos meios cristãos emergiram as Igrejas pentecostais, os movimentos carismáticos e a centralidade da figura do Espírito Santo", escreve Leonardo Boff, teólogo e filósofo.
Segundo ele, "a razão não é tudo nem explica tudo. Há o irracional e aracional. No ser humano há o universo da paixão, do afeto e do sentimento que se expressa pela inteligência cordial e emocional. O espírito não se recusa à razão, antes, precisa dela. Mas vai além, englobando-a num patamar mais alto que tem a ver com a inteligência, a contemplação e o sentido superior da vida e da história".
Eis o artigo.

Na cultura atual a palavra “espírito” é desmoralizada em duas frentes: na cultura letrada e na cultura popular.

Na cultura letrada dominante, “espírito” é o que se opõe à matéria. Matéria sabemos mais ou menos o que é, pois pode ser medida, pesada, manipulada e transformada, enquanto “espírito” cai no campo do intangível, indefinido, e até nebuloso. A matéria é a palavra-fonte de valores axiais da experiência humana dos útimos séculos. A ciência moderna se construiu sobre a investigação e a dominação da matéria. Penetrou até as suas últimas dimensões, às partículas elementares, até o campo Higgs no qual se teria dado a primeira condensação da energia originária em matéria: os tão buscados bósons e hádrions e a chamda “partícula de Deus”. Einstein comprovou que matéria e energia são equipolentes. Matéria não existe. É energia altamente condensada e um campo riquíssimo de interações.

Os valores espirituais, na acepção moderna convencional, situam-se na super-estrutura e não cabem nos esquemas científicos. Seu lugar é o mundo da subjetividade, entregues ao arbítrio de cada um ou a grupos religiosos. Exprimindo-o de uma maneira um tanto grotesca, mas nem tanto, podemos dizer com José Comblin, grande especialista no tema:“quando se fala em ‘valores espirituais’, todo mundo imagina que está falando um burguês numa reunião do Rotary ou dos Lions Club depois de uma abundante ceia regada a bons vinhos e servida com comidas finas; para o povo em geral ‘valores espirituais’ equivale a ‘palavras belas mas ocas”. Ou então pertence ao repertório do discurso eclesiástico moralizante, espiritualizante e em relação hostil com o mundo moderno.

Em razão disso, a expresão “valores espirituais” surge com mais frequência na boca de padres e de bispos de viés conservador. Deles se ouve amiúde que a crise do mundo contemporâneo reside fundamentalmente no abandono do mundo espiritual: a não frequência da missa ou de qualquer referência explícita à Igreja hierárquica.

Mas com os escândalos havidos nos últimos tempos com os padres pedófilos e com os escândalos financeiros ligados ao Banco do Vaticano, o discurso oficial dos“valores espirituais” se desmorlizou. Não perdeu valor, mas a instância oficial que os anuncia conta com muito pouca audiência.

Na cultura popular, a palavra “espírito” possui grande vigência. Ela traduz certa concepção mágica do mundo à revelia da racionalidade aprendida na escola. Para grande parte do povo, especialmente os influenciados pela cultura afrobrasileira e indígena, o mundo é habitado por bons e maus espíritos que afetam as distintas situações da vida como a saúde e as doenças, a vida afetiva. os sucessos e os fracassos, a boa ou a má sorte. O espiritismo, codificou esta visão de mundo pela vida da reencarnação. Possui mais adeptos do que se suspeita.

No entanto, os últimos decênios nos demos conta de que o excesso de racionalidade em todas as esferas e o consumismo exacerbado geraram saturação existencial e também muita decepção. A felicidade não se encontra na materialidade das coisas mas em dimensões ligadas ao coração, ao afeto, às relações de amor, de solidariedade e de compaixão.

Por toda as partes, buscam-se experiências espirituais novas, quer dizer, sentidos de vida que vão além dos interesses imediatos e da luta cotidiana pela vida. Eles abrem uma perspectiva de iluminação e de esperança no meio do mercado de idéias e de propostas convencionais, veiculadas pelos meios de comunicação e também pelas assim chamadas “instituições do sentido” que são as religiões, as igrejas e as filosofias de vida. Elas ganharam força através dos programas de TV e dos grande shows religiosos que obedecem à lógica da espetacularização massiva e que, por isso mesmo, se afastam do caráter reverente e sagrado de toda religiosidade. Numa sociedade de mercado, a religião e a espiritualidade se transformaram também em mercadorias à disposição do consumo geral. E rendem muito dinheiro.

Não obstante a referida mercantilização do religioso, o mundo espiritual começou a ganhar fascínio embora, na maioria das vezes, na forma de exoterismo e de literatura de auto-ajuda. Mesmo assim ele abriu uma brecha na profanidade do mundo e no caráter cinzento da sociedade de massa. Nos meios cristãos emergiram as Igrejas pentecostais, os movimentos carismáticos e a centralidade da figura do Espírito Santo.

Estes fenômenos supõem um resgate da categoria “espírito” num sentido positivo e até anti-sistêmico. O “espírito” constitui uma referência consistente e não mais colocada sob suspeita pela crítica da modernidade que somente aceitava o que passava pelo crivo da razão. Ocorre que a razão não é tudo nem explica tudo. Há o irracional e aracional. No ser humano há o universo da paixão, do afeto e do sentimento que se expressa pela inteligência cordial e emocional. O espírito não se recusa à razão, antes, precisa dela. Mas vai além, englobando-a num patamar mais alto que tem a ver com a inteligência, a contemplação e o sentido superior da vida e da história. Em termos da nova cosmologia ele seria tão ancentral quanto o universo, este tambem portador de espírito. A era do espírito?

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Um Deus anônimo

                                                 Leonardo Boff

26/12/2012
Como homem, Jesus é como todos os homens: um trabalhador, carpinteiro como seu pai, José e um camponês mediterrâneo. Nem super-herói nem um especialmente piedoso que chamasse a atenção.
Era um homem de vila, tão pequena, Nazaré, que nunca é citada em todo o Antigo Testamento, talvez com uns 15 casas, não mais. Participou do destino humilhante de seu povo, subjugado pelas forças de ocupação militar romana. Nenhum documento da época falou dele, fora dos evangelhos. Não era conhecido nas rodas nem de Jerusalém e muito menos de Roma.
Como diz ironicamente o poeta Fernando Pessoa, Jesus não tinha biblioteca e não consta que entendesse de contabilidade. Ele é um anônimo no meio da massa do povo de Israel.
O fato de ter sido a encarnação do Filho de Deus não mudou em nada essa humilde situação. Deus quis se revelar nesse tipo de obscuridade e não apesar dela. E precisamos respeitar e aceitar esse caminho escolhido pelo Altíssimo.
A lição a se tirar é cristalina: qualquer situação, por humílima que seja, é suficientemente boa para encontrar Deus e para acolhermos a sua vinda nos labores cotidianos.
Jesus, disse São Paulo, não se envergonhou de ser nosso irmão. E efetivamente é nosso irmão, não só porque quis se revestir de nossa humanidade, mas é nosso irmão, principalmente por ter participado de nossa vida cotidiana, tediosa, sem brilho e renome, a vida dos anônimos.
Disso tudo tiramos essa singela lição: a vida vale a pena ser vivida assim como é – diuturna, monótona como o trabalho do dia-a-dia – e exigente na paciência de conviver com os outros, ouvi-los, compreendê-los, perdoá-los e amá-los assim como são.
Ele ainda é nosso irmão maior, enquanto dentro desta vida de luz e de sombra, viveu tão radicalmente sua humanidade a ponto de trazer Deus para dentro dela, um Deus próximo, companheiro de caminhada, energia escondida que não nos deixa desesperar face aos absurdos do mundo.
Por isso, precisamos, a despeito de tantos pensadores desesperados e céticos reafirmar: o Cristianismo não anuncia a morte de Deus. E, sim, a humanidade, a benevolência, a jovialidade e o amor incondicional de Deus. Um Deus vivo, criança que chora e ri e que nos revela a eterna juventude da vida humana perpassada pela divina.
Leonardo Boff
Semana do Natal, 26/12/2012.