Frei Bruno Godofredo Glaab
A Bíblia é o livro mais editado e mais lido no mundo. Sua tradução já chegou a quase todas as línguas, povos e nações. Muitos, mesmo incrédulos, buscam na Bíblia uma luz e um sentido para a sua vida. A palavra Bíblia, no entanto, não significa livro, mas antes, coleção de livros.
A Bíblia é uma coleção de livros usada por judeus e por cristãos. Os judeus aceitam apenas o Antigo Testamento por livros inspirados, ao passo que os cristãos aceitam também o Novo Testamento, ou seja, nele está o seu centro. Ainda há uma pequena variação entre a Bíblia como é usada pelos judeus e a Bíblia na versão católica, ou seja, a Bíblia Hebraica não traz sete livros encontrados na versão católica, os chamados livros Deuterocanônicos: Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, Baruc, Eclesiástico e Sabedoria, bem como algumas partes do livro de Daniel. Estes livros, inicialmente também estavam na Bíblia Hebraica, mas por volta dos anos 90 da era cristã, foram eliminados. A Igreja católica, desde o início aceitou estes livros em seu cânon. No ano de 393 houve um Sínodo em Hipona (África). Neste Sínodo são mencionados todos os 73 livros da Bíblia. A Reforma Luterana do Século XVI adotou a Bíblia Hebraica, por isto, ainda hoje, a diferença entre a Bíblia Católica e a Protestante está na falta dos sete livros, acima mencionados.
1 – História da Bíblia
A Bíblia, como hoje a conhecemos, tem uma longa história. Ela não nasceu como livro e menos ainda como livro pronto. Começou com antigas tradições que foram passadas de pais para filhos, para netos e bisnetos. Estas tradições eram celebradas anualmente. Fato fundante na Bíblia é o Êxodo. Este fato aconteceu por volta do ano de 1250 a.C. Sobre este fato nasceu uma experiência religiosa que era celebrada anualmente pelo povo. Fez-se uma aliança com Javé, Deus que tirou os escravos do Egito. Mas até então não havia nada escrito. Esta experiência era celebrada anualmente e transmitida às gerações novas. Sobre esta experiência religiosa de libertação começou a se desenvolver a religião javista (judaica). Muito mais tarde, por volta de 550 a.C. quando o povo de Jerusalém estava exilado na Babilônia, estas velhas tradições foram compiladas e escritas. Assim, pode-se dizer que a Bíblia, como experiência religiosa inicia bem antes de 1250 a.C. mas como livro escrito, começa, com alguns fragmentos no tempo da monarquia de Israel, mas principalmente no período do exílio, isto é, setecentos anos após o Êxodo.
Com a formação do Novo Testamento também não é muito diferente. Quando Jesus viveu ninguém fez nenhuma ata. Só depois de sua paixão, morte e ressurreição é que os discípulos começaram a entender a pessoa e a mensagem de Jesus. Saíram a anunciar sua palavra e a testemunhar sua ressurreição. Isto tudo era trabalho oral. Paulo foi o grande missionário do evangelho. Por volta do ano 48 ou 50 ele escreveu uma carta a uma comunidade onde ele tinha anunciado o evangelho tempos antes. Trata-se da Primeira Carta aos Tessalonicenses. A partir de então, até o ano 63 ele escreveu as assim chamadas cartas paulinas. Somente por volta do ano 70, quando aqueles que conviveram com Jesus já tinham, quase todos, desaparecido, é que Marcos escreveu o primeiro evangelho. Dez anos mais tarde, Mateus e Lucas retomam o evangelho de Marcos e o reescrevem, acrescentando muitas coisas que Marcos omitiu ou desconheceu. Assim, em Mateus e em Lucas temos os relatos da infância de Jesus, bem como muitos discursos e frases de Jesus que não se encontram em Marcos, mas a estrutura dos três evangelhos é semelhante. Estes três evangelhos recebem o nome de evangelhos sinóticos. Neste período também foram escritas as demais cartas que se encontram no Novo Testamento, bem como o livro dos Atos dos Apóstolos, que é a segunda obra de Lucas. Por volta dos anos 90 foi escrito o evangelho de João. Da mesma escola de João saíram também as cartas de João e o Apocalipse, alguns anos mais tarde.
Assim, a Bíblia começou a se formar pelo ano 1250 a.C., como tradição oral e terminou no fim do primeiro século da era cristã, o que compreende um período de mais de mil anos.
2 – Comparação sinótica das diversas traduções da Bíblia
Não existe mais nenhum livro original da Bíblia. Os manuscritos mais antigos são do século IV d.C.. Acontece que antes da era da imprensa, as Bíblias eram copiadas manualmente nos mosteiros. Imagine o leitor que serviço dava copiar uma Bíblia toda. Chegando ao fim, corria-se o risco de copiar uma palavra diferente. Assim, alguns antigos manuscritos trazem diferenças entre si. Alguns têm acréscimos, variantes, etc. Quando se traduz a Bíblia para uma outra língua, corre-se o risco de, às vezes não entender corretamente o sentido original, ou então, usa-se uma linguagem distante daquela falada pelo povo. Por isto mesmo, existem, hoje inúmeras tradições: A Bíblia Ave Maria (da Editora Ave Maria), a Bíblia de Jerusalém – BJ (ed. Paulus), a Bíblia Tradução Ecumênica - TEB (ed. Loyola e Paulinas), a Bíblia Pastoral (Ed. Paulus), etc. Todas elas se propõem um objetivo. As Bíblias de Jerusalém e a TEB querem ser traduções técnicas, principalmente usadas nas escolas de teologia. A Bíblia Pastoral quer ser uma tradução popular, ou seja, uma linguagem simples, compreensível para todos. Agora, neste ano saiu também a nova edição da Bíblia Sagrada, Tradução da CNBB. Esta tradução quer ser a oficial da Igreja. “Esta tradução, para ouvir e guardar no coração, servirá de referência para a Igreja Católica no Brasil. Dela extrair-se-ão os textos citados nos documentos eclesiais. Concebida com vistas à proclamação, destina-se à leitura comunitária e individual... (Apresentação). A seguir veremos uma comparação de um mesmo texto (Mc 10,42-44) extraído da Bíblia de Jerusalém, da Bíblia Pastoral e da Tradução da CNBB:
BJ
“Chamando-os, Jesus lhes disse: ‘Sabeis que aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos”
CNBB
“Jesus então os chamou e disse: ‘Sabeis que os que são considerados chefes das nações as dominam, e os seus grandes fazem sentir seu poder. Entre vós não deve ser assim. Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos”.
Pastoral
“Jesus chamou-os e disse: “Vocês sabem: aqueles que se dizem governadores das nações têm poder sobre elas, e os seus dirigentes têm autoridade sobre elas. Mas, entre vocês não deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de vocês, e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se o servo de todos”.
Note-se, que a linguagem da Bíblia de Jerusalém é técnica. Preocupa-se com a presteza, mas não apresenta uma linguagem fácil para leituras públicas. Não se costuma iniciar frases pelo verbo, pois elas podem não ser entendidas pelos ouvintes. Já a Bíblia Pastoral usa a terceira pessoa. Ao invés de dizer “vós”, diz: “vocês”. Assim, de fato, fala o povo. Porém, numa leitura em público, a terceira pessoa, às vezes deixa margens de dúvidas quanto ao sujeito. Exemplo: “Mário derrubou a sua casa. Trata-se da casa de Mário, ou da casa de quem ouve a frase? Por isto, a Tradução da CNBB difere da Bíblia de Jerusalém e da Pastoral. Quer ser uma tradução de excelente qualidade, precisa para leituras públicas, mas sem o aparato técnico da Bíblia de Jerusalém, que oferece muitas notas explicativas, referências a outros textos próximos e paralelos, etc.
3 – Interpretação de textos
A Bíblia, por ser de outro tempo e de outra cultura, nem sempre é de fácil compreensão. Não se pode ler a Bíblia como se ela tivesse sido escrita no Brasil nestes últimos anos. É preciso ler a Bíblia, levando em conta seu texto e seu contexto, onde foi escrita. Um exemplo típico é a visita de Jesus à casa de Marta e Maria (Lc 10, 38-42). Jesus entra na casa destas duas mulheres. Marta se ocupa dos serviços domésticos, enquanto Maria senta aos pés do mestre, ouvindo suas palavras. Marta repreende sua irmã e é repreendida por Jesus. Uma leitura simplista diz que a Bíblia quer nos ensinar que é preciso parar e ouvir a Palavra de Jesus. Mas esta leitura é feita a partir de nossas correrias de hoje e não leva em conta o contexto do texto. A realidade é outra. Nos tempos de Jesus, a mulher era muito marginalizada. Jamais algum mestre entrava em casa de uma mulher. Nem se devia cumprimentá-la. Ela não recebia nenhuma instrução. A educação religiosa era apenas para os homens. Um mestre da época dizia: “quem ensina a Bíblia para sua esposa ou para sua filha, prostitui as mesmas”. No culto as mulheres não tinham nenhuma participação. As mulheres deviam ser dóceis aos maridos e aos pais. Sua função era apenas cuidar da casa e dos filhos. Jesus inverte completamente esta situação. Faz o que nenhum mestre de seu tempo fazia: entra na casa de duas mulheres (Marta e Maria). Em segundo lugar quebra os costumes da época, pois administra a Palavra de Deus à Maria. Nenhum mestre ensinava mulheres. Porém Marta era uma mulher que já tinha introjetado os costumes machistas de seu tempo. Ela, mesmo sendo mulher, pensa como os homens. Chama a atenção de Jesus e de Maria. Pede que Maria assuma seu papel de cuidar do serviço doméstico ao invés de ficar ouvindo a Palavra de Deus. Jesus mostra que a Palavra de Deus é também das mulheres. Assim contextualizado, o mesmo texto de Lc 10,38-42 diz muito mais do simplesmente intercalar trabalho e momentos de oração. O texto nos mostra que não devemos fazer discriminação de sexo. A Palavra de Deus é para todos. A mulher tem os mesmos direitos e a mesma dignidade.
Para se ter uma boa compreensão dos textos bíblicos, convém evitar a leitura salteada de versículos aleatoriamente. Convém ler os textos do início ao fim. Ler também as introduções que as traduções das Bíblias colocam. Ler as notas e comentários que muitas traduções também trazem. E por que não dizer? Ao amigo da Bíblia convém ler comentários bíblicos. Hoje, nas editoras cristãs (Loyola, Vozes, Paulinas, Paulus, Sinodal, Cebi) existe muito material de excelente qualidade, inclusive material bem simples, popular, ao alcance de todos. Só assim poderemos fazer uma leitura contextualizada e proveitosa, evitando o fundamentalismo empobrecedor.
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