sábado, 1 de outubro de 2011

Feições femininas de Deus

Bruno Glaab

Introdução

Em nossas reflexões somos acostumados a chamar a Deus de Pai. Achamos isto lógico, pois combina com toda nossa cosmovisão e, além do mais, a Bíblia nos dá a base desta visão patriarcalista. Quando, há alguns anos, certas pessoas começaram a chamar a Deus de mãe, houve verdadeiro mal-estar. Supunham algumas pessoas de boa fé, que se estava a blasfemar o nome de Deus. Onde já se viu, tratar a Deus como mulher? Um escândalo! De fato, a nossa cultura nos leva a olhar para Deus como Pai e nossa sociedade machista nem sequer pode pensar um Deus-mãe. No entanto, é bom lembrar que, falamos de Deus por analogia, ou seja, falamos de Deus a partir de nossas experiências vitais. O que para nós é sagrado, isto projetamos sobre Deus. Como, nossa cultura leva acentuado patriarcalismo, é lógico que olhemos para Deus como Pai. E, na Bíblia, que vem expressa em linguagem humana, imersa em uma cultura concreta, também não é diferente, pois esta mesma cultura era patriarcalista.
Ninguém de fato pode falar de Deus a não ser usando categorias humanas. No sentido estrito do termo, Deus não é mãe, nem pai, pois não gestou nem procriou a ninguém. Já no sentido figurado, sim, podemos chamar a Deus de Pai ou também de mãe. Nós humanos é que projetamos em Deus as nossas categorias. Assim é muito compreensível que, na cultura judaica, onde a Bíblia se formou, Deus viesse apresentado como masculino. Mas não necessariamente deve ser assim, pois até na Bíblia há inúmeros vestígios de Deus-mãe.

1 – Shadai, nome feminino

No Antigo Testamento encontram-se muitos títulos para Deus. Os mais comuns são: Javé (mais de 6 mil vezes) e Elohim (mais de 2 mil vezes). No entanto, encontram-se, no Antigo Testamento, 48 vezes o nome de Shadai. Só no livro de Jó este título aparece 31 vezes[1]. Este nome é sintomático, ou seja, expressa algo de profundo da experiência oriental, pois o termo Shadai é rico em sentido:

“A palavra Shadai vem de Shad: mama, seio, úbere. Expressa a idéia de fartura, fertilidade, abundância, ternura carinho, amor. É o leite materno que alimenta a criança. São os úberes exuberantes que fazem crescer robustos os filhotes do rebanho”[2].

Muito embora nem todos os dicionários concordem, e mesmo que a LXX traduzisse o termo por Pantokrator, isto é, Todo-poderoso, e a Vulgata o traduzisse por Omnipotens, o que também é Todo-poderoso, ou ainda, que se afirme que Shadai traduz o autosuficente, destruidor, ou ainda Deus da montanha[3]¸ o Dicionário de Jenni e Westermann afirma que o termo Shadai tem relação com a palavra semítica que significa peito e é nome de uma deusa da fecundidade[4]. Porém, o mesmo dicionário afirma logo a seguir, que, por aqui se tratar de um Deus masculino, esta etimologia não interessa. Como, no entanto Shadai está próximo a shad, e sendo que este termo é traduzido por peito, seios pode-se supor que a tradução de Shadai seja de fato uma designação feminina.

“Estudos recentes voltaram a ligar o epíteto ao acádico shadu, ‘montanha’, mas não no sentido estrito do termo, e sim na acepção de ‘seios’, ‘mamas’ (em hebraico, shaddayim; cf Gn 49,25: ‘por El Shadday bênção das mamas e dos seios’); portanto, não o ‘Deus da montanha’ mas o ‘Deus da abundâncvia”[5].

Aplicando a Deus o título de Shadai, a cultura hebraica demonstra que em seu meio também havia a possibilidade de ver Deus como mãe, pois é no conceito de mãe que se expressa a noção de proteção, de carinho, de alimento e de fartura, elementos básicos para a vida da criança. Neste sentido, a figura da mãe é mais importante que o pai na gestação e na sobrevivência do ser indefeso recém nascido. Sem pai a criança pode viver, sem a mãe, perece. O homem e a mulher transferem esta sensibilidade para a sua relação com Deus. O Deus que acompanha Abraão, em certos momentos, é mãe.

“Quando Deus prometeu a Abraão que multiplicaria a sua descendência como as estrelas do céu e os grãos de areia do mar, apareceu no texto este nome: ‘porque eu sou Shadai’, isto é, o Deus dos seios maternos que têm leite em abundância para milhões de filhos”[6].

Como se percebe, em Israel existe a experiência de um Deus com rosto de mãe, que cuida, alimenta e dá carinho ao povo nos momentos de dificuldade e de desespero. Deus-mãe é proteção, sinal de prosperidade e fartura. Em momentos de extrema dificuldade, como no caso de Jó, o personagem que se viu num profundo desespero, abandonado, aparentemente por Deus e por todos, a figura de um Deus-mãe poderia ser mais simpática, ou até, mais necessária.

2 – Algumas feições femininas de Deus

Além do nome de Shadai que é feminino, temos, também, na Bíblia, outras representações de Deus que vem exaradas em características femininas:

a) Um Deus carinhoso (Is 66,6 –13)

O Exílio da Babilônia (598-538a.C.) significou a destruição para o povo de Jerusalém. A cidade foi arrasada e o templo, como marco da religião javista, foi destruído (2Rs 24-25). A destruição do templo, bem como da cidade com seus muros, mais do que destruição física, significava, para aquele povo, a destruição de imaginário social e, principalmente de um ideário religioso. Após o decreto de Ciro, rei da Persia (Es 1,1ss), permitindo a volta do povo para Jerusalém (539a.C.) o povo caiu na dura realidade ao ver as ruínas da cidade santa e do templo. Era preciso reconstruir. Porém, diante das pedras e dos destroços, faltava ânimo para aqueles repatriados. A esperança estava em crise. O terceiro Isaías (Is 56-66) é arauto da reconstrução, não tanto física, mas ideológica de Jerusalém. Numa de suas diversas tentativas de encorajamento, ele escreve a perícope de Is 66,6-13. O profeta descreve Jerusalém como mãe carinhosa que amamenta seus filhos e por fim apresenta o próprio Deus como mãe[7]. É o Deus que se manifesta nas esperanças de um povo.


“Como uma pessoa que a sua mãe consola, assim eu vos consolarei; sim, em Jerusalém sereis consolados”(Is 66,13).

Deus é sempre a proteção de seus filhos, por isto mesmo, em momentos de crise e de desalento no retorno do Exílio, nada melhor do que apresentar o consolo e a proteção de Deus como o carinho da mãe que cuida de seu filho e lhe dá segurança. Isaías conhece a ação protetora de Deus, que sempre se posiciona a favor da vida, e por isto mesmo, apresenta Deus qual mãe a consolar o fruto de suas entranhas, pois esta é a melhor imagem da proteção da vida. Deus é mãe, pois para os exilados repatriados, como para a criança indefesa, nada melhor do que a figura da mãe com seus seios fartos, de sua ternura e de sua proteção. Talvez nenhuma literatura do Antigo Testamento melhor que a profética, poderia ter esta ousadia de apresentar a Deus com feições de mulher-mãe, pois ninguém melhor do que os profetas para entender a carência do povo e o amor de Deus.
Logo, Deus, em Is 66,6-13, é mãe para seu povo. Ele é alimento, segurança e carinho. Deus-mãe revela uma situação em que os repatriados possam voltar a ter esperança, mesmo em meio às ruínas e ao sofrimento. O povo pode reconstruir sua identidade em meio às pedras, pois o Deus-mãe não o abandonou, nem voltou contra ele seu rosto.

b) Deus como mãe (Is 49,14-15)

O segundo Isaías (Is 40-55) é o assim chamado profeta da consolação[8]. Seu livro é o grande poema do retorno do exílio, qual segundo êxodo, ainda mais glorioso que o primeiro[9]. Neste quadro quando se espera voltar para a pátria, o profeta Isaías descreve o amor de Deus na perspectiva da mulher:

“Sião dizia: ‘Iahweh me abandonou; o Senhor se esqueceu de mim’. Por acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho de seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti” (Is 49,14-15).

Nesta promessa de retorno, quando o povo está desolado e precisa de alento, o profeta usa a figura da mulher-mãe. Assim como a mãe nunca esquece seu filho, Deus também não esquece de Israel. Neste sentido o profeta faz questão de usar a figura da mãe para descrever o amor de Deus, talvez porque o amor do pai não tenha esta característica de carinho e presença. Em Nm 11,12 Moisés reclama diante de Deus, dizendo: “Fui eu, porventura, que concebi todo este povo? Fui eu que dei à luz, para que me digas: ‘Leva-o em teu regaço, como a ama leva a criança no colo, à terra que prometi sob juramento a seus pais?” Moisés quer fugir do compromisso e por isto mesmo não se entende como mãe do povo[10]. Moisés não nega ser pai do povo, nega ser mãe. Pois se fosse, teria o compromisso com o povo.

Conclusão

Nada deve estranhar ao leitor quando se apresenta imagens de Deus diferentes das convencionais. Deus é mais do que dele podemos afirmar. Certo é que, tudo o que de bom temos em nossa situação humana, podemos projetar nele, e ainda não dizemos tudo.
Neste período de emanicipação da mulher, resgatar a figura de Deus como mulher, certamente é de grande valia. Resta para hoje, além destas figuras, encontrar outras que expressem o rosto negro e índio de Deus, pois ele está em todos aqueles e aquelas que hoje precisam de proteção, de carinho e de conforto. Deus está infinitamente acima de nossos adjetivos, mas nossos adjetivos o tornam mais compreensível a nós.

Bibliografia

ALONSO SCHÖKEL, L.; SICRE DIAZ, J. L. Profetas. S. Paulo: Paulinas, 1988, Vol. I
BORTOLINI, José. Roteiros homiléticos. In: Vida Pastoral. S. Paulo, 2001, n.219
SOUZA, Rômulo C. Palavra Parábola – uma aventura no mundo da linguagem. Aparecida: Ed. Santuário, 1990
STEINMANN, J. O livro da consolação de Israele os profetas da volta do exílio. S. Paulo: Paulinas, 1976
VADEMECUM para o estudo da Bíblia. s. Paulo: Paulinas, 2000





[1] HAMILTON, V. P. Shadday. In: Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento.
[2] SOUZA, R. C. Palavra Parábola. p.92.
[3] HAMILTON, V. P. Op. Cit.
[4] JENNI, E.; WESTERMANN, K. Shadday. In: Diccionario teologico manual del Antiguo Testamento.
[5] VADEMECUM para o estudo da Bíblia. p.283.
[6] SOUZA, R. C. Op. cit. p.92.
[7] BORTOLINI, J. Roteiros homiléticos. In: Vida Pastoral.n.219. p.35.
[8] STEINMANN, J. O livro da consolação. p.98ss.
[9] ALONSO SCHÖKEL, L; SICRE DIAZ, J. L. Profetas I. p.271ss.
[10] Idem, p.327.

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