sábado, 22 de outubro de 2011

O DEUS DE JESUS CRISTO




-Reflexões sobre Lc 15,11-32 –
Frei Bruno Glaab

Introdução: é muito comum, ainda hoje, em nossa realidade, vermos pessoas escrupulosas, que têm uma imagem maldosa de Deus em sua cabeça. Pensam que Deus está sempre pronto para punir, castigar e mandar para o inferno a quem cometer algum deslize. Parece que Deus nem ama seus filhos e filhas, antes, qual carrasco cruel, anota qualquer limitação humana e um dia vai tirar satisfação. Este Deus vingativo, tão comum na mentalidade popular, parece alegrar-se com a condenação e, mais do que isto, já aqui na terra está sempre se vingando dos erros cometidos pelos fiéis. Muitas vezes, diante de tragédias, é comum ouvir aquela velha máxima: “Deus tarda, mas não falha”. Muitas pessoas, ao ouvirem que Deus é profundamente misericordioso, sentem-se mal, pois crêem que Deus deve punir, com todo rigor os erros cometidos, principalmente quando estes são da esfera do sexto mandamento da lei Deus (Ex 20,14).
Para isto certamente contribuiu uma pregação exageradamente moralista da igreja, baseada mais no Antigo Testamento, ou até num dualismo grego, que tantas vezes, falava mais alto na teologia do que a própria Bíblia. É preciso dizer que, esta idéia de Deus terrível é estranha ao Deus revelado por Jesus Cristo. De fato, no Antigo Testamento temos muitas vezes a imagem de um Deus vingador (Ex 20,5; Dt 6,14ss; Dt 8,19s). Pior que isto, Deus até se vingaria nos filhos e netos de quem transgrediu suas leis. Basta só lembrar o pecado de Davi, quando se apoderou da mulher de Urias (2Sm 11,2ss). Depois de ser alertado pelo profeta Natan (2Sm 12,1ss) o rei reconhece seu pecado e por isto é perdoado, mas seu filho deverá morrer (2,Sm 12,14). Fatos como estes nos são atestados muitas vezes na Bíblia. Além disto, no livro do Deuteronômio Deus pede que se elimine os maus, ou os idólatras (Dt 13,10s.16). Também os adúlteros e impudicos deviam ser apedrejados (Lv 20,10ss; Dt 22,22). Textos como estes, são, de fato freqüentes no Antigo Testamento[1].
No Novo Testamento ainda encontramos os reflexos desta mentalidade nos interlocutores de Jesus e mesmo entre seus discípulos. O pedido de apedrejamento da mulher adúltera (Jo 8,1-11) reflete esta teologia, bem como a pergunta dos discípulos a Jesus sobre a origem da cegueira do cego de nascença (Jo 9,2). De fato, a idéia de Deus, no Antigo Testamento é uma idéia terrível. O nome de Yahweh é santo e não pode ser pronunciado assim no mais, pois ao fazê-lo, o homem se exporia ao castigo iminente. Ao ler a palavra Yahweh, deveria-se pronunciar Adonai, o que se traduz por “meu Senhor”. Em tudo isto pode-se perceber a idéia de um Deus ciumento, vingativo e malvado.
Ainda hoje, esta idéia de Deus vingador é forte. Qualquer infortúnio que aconteça é visto como castigo. Muitas vezes, com isto se julga o próximo, quando este sofre qualquer doença, acidente ou problema. Logo se insinua que estaria pagando algum pecado cometido. As catástrofes naturais, como as secas, enchentes, granizo, etc. são vistas como punição pelos pecados. Outras vezes se alimenta a trágica neurose do escrúpulo doentio. Quem alguma vez teve a infelicidade de errar, não consegue se perdoar a si mesmo, pois imagina que Deus é um vingador e que de qualquer maneira, um dia terá de cair nas mãos deste Deus terrível para um ajuste de contas. Em vista disto, alguns penitentes voltam sempre de novo a confessar pecados há muito perdoados. Outros enveredam pelo caminho da penitência patológica, como jejuns abusados, caminhadas descalças em chão de asfalto quente nas romarias ou procissões, etc. Parece que Deus se alegraria vendo um filho ou filha se auto-massacrando. Já que Deus viu o sofrimento buscado pelo pecador, ele o perdoaria. Seria um Deus sádico[2] que se alegraria com o sofrimento humano.
Esta mentalidade é perigosa. Em primeiro lugar, pelo fato de desfigurar a imagem de Deus. Em segundo lugar, pode-se cair na teologia da retribuição. Os bons teriam sucesso em tudo e os maus sofreriam toda e qualquer sorte de malefícios. Desta forma, aqueles que tudo têm, os multimilionários deveriam ser os bons e aqueles que vivem no desemprego, na miséria, seriam os pecadores, que já aqui na terra estariam pagando seus pecados. Daí vem a idéia do: “aqui se faz, aqui se paga”. Além disto, deve-se alertar para um perigoso desvio psicológico de sado-masoquismo que se contenta em buscar o sofrimento.
Esta, no entanto, não é a imagem de Deus deixada por Jesus Cristo. Muitas vezes ele fala de Deus como oPai (Mt 6,9). Deus é o Deus dos pequenos (Mt 11,25). É o Deus dos pecadores (Lc 5,29ss). É cheio de misericórdia e se alegra com a conversão do pecador (Lc 15,7.10). Chega ao extremo de, na cruz, perdoar ao malfeitor arrependido e lhe prometer o paraíso (Lc 23,43). O Deus de Jesus não se vinga nem na hora em que seu filho é crucificado. Dito isto, vamos olhar a imagem de Deus que encontramos em uma parábola de Jesus que fala do Pai.

Deus como Pai amoroso (Lc 15,11-32)

Quando Jesus compara Deus com a figura do pai ele não o faz de acordo com o que se sabe a respeito desta figura no Antigo Testamento. Ali o pai até poderia decidir sobre a vida e a morte de seus filhos[3]. Antes, Jesus pensa Deus como o pai generoso e amigo que se alegra com a vida do filho. Mais ainda, que respeita a decisão do filho, até quando este opta pela separação (Lc 15,12). O pai da parábola não é possessivo, nem autoritário[4]. Respeita a antecipação de sua morte pelo filho que pede a herança. É um pai que segura a emoção na partida, mas a solta na volta do filho perdido (Lc 15,20). Nada exige para reintegrar o filho ao seu verdadeiro lugar[5], pois a volta do filho foi tudo para ele. Não lhe interessam recriminações, nem pedido de perdão. A volta o é que interessa. Trata-se de verdadeira imagem de amor apaixonante de um coração paterno que quer, a todo custo, a felicidade do filho. Esta figura de Deus como pai nada tem em comum com o Deus vingador do Antigo Testamento e mesmo de nossos tempos.
O filho pecador não é quem cometeu alguns pecados, mas aquele que quer viver longe e independente do pai. Quer ser autônomo, gerir sua própria vida. O convertido também não é aquele que reparou alguns atos maus. É, antes, aquele que reorientou sua vida para junto do Pai, pois reconheceu a tremenda estupidez cometida ao se afastar do pai. Agora, seu desejo é viver sempre perto do pai. Tudo isto, fez com que o pai se alegrasse e fizesse festa (15,22). Esta alegria e esta festa já estão prefigurados nas atidudes de Jesus que, diante de sua compreensão de Pai, se mistura com os que estavam em pecado e come com eles (Lc 5,29ss; 15,1ss).
O contraste entre o irmão mais velho e o pai mostra (Lc 15,25ss) a celeuma entre a concepção de Deus dos fariseus[6] e a de Jesus[7]. Estes têm a idéia de um Deus que afasta os maus dos bons e sob nenhum pretexto, quer a volta. Um verdadeiro patrão severo, para quem os filhos seriam apenas servos a executar tarefas[8]. De um lado encontra-se a mentalidade de um Deus vingativo e, portanto, o irmão é enquadrado e condenado (Lc 15,30) por esta mesma concepção de Deus. De outro lado, encontra-se a visão que Jesus veio trazer sobre o Pai. Esta visão não é condenatória, não se alegra com a desgraça, mas quer reunir numa mesma festa, tanto o filho esbanjão, quanto o suposto filho obediente. Não se sente ofendido pela saída do filho, mas se alegra com sua volta. Não se pode falar em vingança ou punição neste comtexto.
Nesta figura de pai está implícita a missão de Jesus que faz festa com os pecadores[9] e com eles inicia um novo relacionamento, enquanto que na figura do irmão mais velho, está estampado a mentalidade farisaica e a figura de um Deus vingador do Antigo Testamento que não conhece a misericórdia, mas apenas a “justiça” no seu sentido mais legalista e humano possível. Por isto mesmo, a prática de Jesus, que come e bebe, que fica na companhia dos pecadores, que se deixa tocar pela adúltera e que veio buscar o que estava perdido (Lc 19,10), é na realidade, a decorrência lógica da imagem de Pai que Jesus tem e transmite para os seus.




A conversão do filho, ou a conversão da idéia de Deus?

Muito se poderia comentar sobre a atitude dos dois filhos da parábola. Pode-se analisar a atitude do filho mais jovem, como a do filho mais velho. Mas aqui, na realidade não se quer analisar a atitude dos filhos, mas antes, a atitude do pai. Ou melhor, quer se perceber a conversão da idéia de pai. Enquanto no Antigo Testamento, como fora explanado acima, o pai era visto de forma terrível[10] e esta imagem era refletida pelos fariseus, Jesus mostra aquele que ele já havia chamado de Abba (pai) é bem diferente. Desta concepção de Deus que as pessoas têm, depende a sua ação. Em primeiro lugar, o filho mais velho (o fariseu), devido à sua visão, não chama a Deus de pai, nem ao próximo de irmão[11]. Ele não se relaciona satisfatoriamente com Deus e menos ainda com o seu próximo. De sua mentalidade brota uma maneira condenatória de se relacionar, bem como uma vida dura e fria sem alegria. Espera, à maneira comercial, um cabrito para se banquetear. Nem sabe que participa dos bens do pai. Ele nem sabe que é filho. Em segundo lugar, Jesus, a partir de sua visão inaugura uma prática que antecipa o reino. Deus é um papaizinho afetivo, alegre, festeiro. Em conseqüência, o próprio Jesus se torna festeiro, come e bebe, anda em companhia dos pecadores, etc. Afinal, o evangelho é Boa Notícia para aqueles e aquelas que querem voltar para Deus.
Além destas realidades, ainda pode-se destacar outras. A conversão, para aquele que vê Deus como um pai amoroso, é sempre uma alegria. É festa. Acabam-se as neuroses de culpa acumulada ou da incapacidade de se perdoar a si próprio. Converter-se é alegria. Reconhecer-se pecador, quando se tem um pai amoroso é relativamente fácil, pois o pai amoroso é todo bondade e quando filho se desviou desta bondade, logo sente um remorso sadio. No entanto, aquele que vê Deus como um terrível justiceiro, torna-se cumpridor de leis, mas não aprende a amar. Pior que isto, não sente a necessidade de se converter, pois nem sequer precisa disto. A observância, mais ou menos rígida, da lei, lhe dá a certeza da salvação pelos seus próprios méritos. Não necessita de se aproximar de Deus para um relacionamento afetivo em busca de perdão. Tudo é rigorosamente medido e pesado. Nada tem a mudar. Porém, sua vida é triste. Deus é patrão, o povo é empregado, a vida nada mais é que uma coleção de obrigações e proibições. Não há alegria[12].

Conclusão

Nós, homens e mulheres do século XXI temos vestígios de falsas idéias sobre Deus. Estas idéias falsas nos atrapalham em nossa caminhada de fé, tanto a nível pessoal, como comunitário. Urge limpar nossa mentalidade vétero-testamentária, ou mesmo dualista grega e permitir que a pregação e a prática de Jesus molde em nossos corações e na nossa inteligência a verdadeira imagem de Deus, para que, assim possamos viver e levar a todos a Boa Notícia do Reino, onde Deus será a alegria de todos. Ninguém melhor do que Jesus Cristo para nos falar de Deus.

Bibliografia

GORGULHO, Gilberto e ANDERSON, Ana Flora. O caminho da paz – Lucas. São Paulo: Paulinas,1980
L’EPLATTENIER, Charles. Leitura do evangelho de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993
MCKENZIE, John. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983
RIUS-CAMPS, Josep. O evangelho de Lucas- o êxodo do homem livre. São Paulo: Paulus, 1995
STORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Lucas – os pobres constroem a nova história. São Paulo: Paulinas, 1990
VARONE, François. El Dios sádico.Bilbao: Ed. Sal y Térrea, 1988
[1] Não se quer aqui fazer um estudo destes textos, apenas se quer lembrar que a idéia de Deus reflete a mentalidade de um povo em um determinado momento histórico. Assim sendo, numa cultura primitiva, onde a guerra santa era entendida como vontade divina, facilmente se projeta em Deus as idéias e valores vividos por esta mesma cultura.
[2] VARONE, François. El Dios Sádico. p.10ss.
[3] MCKENZIE, J. Pai. In: Dicionário Bíblico.
[4] L’EPLATTENIER, C. Leitura do evangelho de Lucas. p.143.
[5] L’EPLATTENIER, C. Op.cit. p.144.
[6] RIUS-CAMPS, J. O evangelho de Lucas – o êxodo do homem livre.p.254.
[7] L’EPLATTENIER, C. Op. cit. p.145.
[8] STORNIOLO, I. Como ler o evangelho de Lucas. P.143.
[9] L’EPLATTENIER, C. Op.cit. p.147.
[10] MCKENZIE, J. Pai. In: Dicionário Bíblico.
[11] GORGULHO, G. e ANDERSON, A. F.O caminho da paz – Lucas. p.186.
[12] STORNIOLO, I. Como ler o evangelho de Lucas. p.143.

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