sábado, 29 de outubro de 2011

FINADOS

O dia de finados será celebrado no dia 02 de Novembro. Neste dia costumaos visitar os cemitérios e rezar pelos nossos amigos, parente e familiares que já partiram. Talvez o dia de finados possa servir para uma reflexão. Mais do que lembrar as pessoas que já partiram, poderemos refletir sobre o sentido de nossas vidas. Mais cedo ou mais tarde também nós estaremos em algum cemitério. Nem sempre gostamos de pensar nisto. Mas, pensando ou não pensando, este dia chegará.

Aos olhos da fé, a morte não é uma tragédia, mas a passagem para a casa do Pai. Em Jesus temos a certeza da Vida Eterna. Talvez finados possa ser uma data em que pensemos na Vida Eterna. São João, na sua primeira carta nos diz "caríssimos, desde já somos filhos de deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é" (1J 3,2).
Para a nossa reflexão, deixo o artigo do Pe. Mário Glaab.

NOSSOS IRMÃOS FALECIDOS


Pe. Mário Fernando Glaab


Todos nós, com maior o menor intensidade, lembramos de nossos parentes, amigos e conhecidos que já não estão mais conosco: os falecidos. Isso é próprio de cada ser humano; aliás, se estamos na história é porque tantos outros influenciaram nessa própria história. Ninguém cai do céu como um meteoro, mas vem por sua família, por seus antepassados. Mesmo sabendo que viemos de Deus e a Deus retornaremos, sabemos também que Deus nos deu e dá a vida, junto e por meio dos demais seres humanos.A lembrança que temos de nossos defuntos não fica no abstrato, mas nos leva a expressões bem concretas. Os cemitérios são confirmação a disso. Contudo, não somente eles. Quem de nós não cultiva a memória de seus entes queridos mortos guardando lembranças deles, como fotografias, objetos que eram seus e, principalmente, rezando por eles? Entre nós católicos, o costume de oferecer missas pelos falecidos está muito enraizado. No dia dos finados, dois de novembro, ao visitar as sepulturas dos falecidos, levando flores e coroas, todos fazem orações; fazem memória do que era a vida com eles e, o que é a união em Cristo também hoje.As orações e as missas nas intenções dos falecidos se revestem de um sentido único. No imaginário comum, ou da grande maioria dos crentes, as orações têm por finalidade “lembrar” a Deus de que determinado finado merece o perdão de seus pecados e ser acolhido no céu. Aquele que reza, e mais ainda o que oferece a missa, sente-se como um “advogado”, defensor de alguém que quer receber a recompensa. Nas missas que manda rezar ele traz para o seu lado a paixão, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo, para que assim, contando com esse valor infinito, o pedido ser reforçado e atendido. Não se duvida da boa intenção e do ato caritativo empreendido pelo orador e pedinte. Mas, não seria possível esclarecer e aprofundar um pouco mais em que poderia consistir uma verdadeira oração pelos mortos?Partindo do princípio de que Deus ama a todas as pessoas indistintamente, e que quer que todos se salvem, será necessário lembrar a Ele de que não deve esquecer-se dos nossos queridos falecidos? Não deveríamos ir um pouco além e, entregá-los, de nossa parte, totalmente nas mãos desse Deus que é amor infinito? O que poderia ser concretamente essa entrega? Sem dúvida, Deus é o primeiro interessado na salvação de todos os seres humanos. Ele faz tudo para ter todos e cada um sempre consigo. O que impede, de nossa parte, a acolhida da salvação de Deus em toda a sua plenitude, é a nossa finitude, a nossa incapacidade de corresponder com amor sem reservas ao amor total de Deus. Então, ao rezar por alguém ou fazer memória dele, muito mais do que lembrar a Deus o que lhe convém fazer pelo defunto, aquele que ora deve dispor-se a, na comunhão com todos os seres humanos, especialmente com os falecidos, vencer os obstáculos das limitações e lutar para construir uma realidade mais conforme os desejos do próprio Deus. Isso é, concretamente, trabalhar para que a maldade diminua e que o bem aumente. Rezar por um falecido pode consistir em assumir o compromisso de continuar as lutas que ele enfrentava; melhorar o que ele não conseguiu levar a termo: sanar as consequências de seus erros e aperfeiçoar suas virtudes. A oração propriamente dita consiste apenas no momento em que esse compromisso é atualizado, mas não se restringe ao momento, somente. Como verdadeiro gesto de amor para com o ente já falecido, nada melhor que seguir seus bons exemplos, levando-os adiante; fazendo-os melhor ainda, e ser grato por tudo. Mas, e as missas em sufrágio dos defuntos? Nada contra; tudo a favor! Bem entendido, todavia.Na celebração eucarística, em Jesus Cristo e com Jesus Cristo, fazemos memória de toda a nossa história – passada, presente e futura – e a apresentamos ao Pai. Nessa memória, justamente por ser em Jesus Cristo, oferecemos a Deus o que de melhor temos: a doação total de Jesus de Nazaré para que o mundo tenha vida. O importante é estar ciente de que nós estamos juntos com Ele ao oferecer o melhor (de nada adianta “mandar rezar uma missa” se não se participa dela verdadeiramente!). Somos envolvidos no mistério de amor de Cristo e, nele também podemos amar, pois ele é o caminho que nos conduz ao verdadeiro amor. Quando então, durante a Eucaristia, trazemos para a memória os defuntos, estamos comungando em Cristo também com eles. Aproveitamos o momento de especial comunhão de amor para nos enriquecermos todos na acolhida do amor de Deus. Participando com os finados do mistério da entrega total de Cristo – amor até as últimas consequências – dispomo-nos de modo único, a construir um único corpo, o Corpo de Cristo, também com os que já partiram.Portanto, ao visitar os cemitérios pela passagem do dia dos finados, ao contemplar as cruzes plantadas nas sepulturas, lembremo-nos de rezar por todos os falecidos; mas lembremo-nos também que rezar é muito mais do que repetir palavras – é compromisso de vida. Lembremo-nos também que as cruzes, na sua simbologia, vão além da morte e que apontam para a vitória do amor, a Ressurreição; ou ainda, a acolhida nos braços do Pai.


Postado por Frei Bruno Glaab Postagens mais recentes Início

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

ATUALIDADE DA REFLEXÃO E DA PRÁTICA TEOLÓGICA

Pe. Mário Fernando Glaab


Na era da informática, ou da facilidade proporcionada pela internet, dispensadora do esforço intelectual, a impressão que se tem, é que cada vez mais, a reflexão cede lugar para as soluções imediatas que satisfazem desejos igualmente imediatos. Pouca prática duradoura permanece após consultas tão acessíveis que exigem tão pouco esforço. Os jovens - e não somente eles – são cada vez mais levados por esse mundo virtual imediato a se desligar dos desafios reais que a sociedade enfrenta e que a faz sofrer. Longe dos problemas, ficam também longe de uma reflexão séria que poderia se transformar em prática engajada no processo de transformação.
Essa questão afeta as pessoas em todos os campos, também em suas práticas religiosas. A fé das pessoas parte de espaços e de tempos concretos e leva novamente aos mesmos espaços e tempos. A maneira de se viver cristãmente não escapa dessa lei. Constata-se que nos últimos tempos a vivência cristã em nosso meio está num processo contínuo de distanciamento entre fé e vida. A fé, se é que pode ainda ser chamada assim, está cada vez mais no nível do belo aéreo. Celebram-se ritos esplendorosos nas igrejas ou em praça pública, que ao invés de expressar vida em luta contra os males que afligem multidões de excluídos, mostram uma fé alienante e abstrata. As vestes litúrgicas e os utensílios sagrados acentuam o esplendor. Uma forte crise se abateu sobre a teologia católica e também sobre a Teologia da Libertação como um todo. Não que ela tenha desaparecido, nem que faltem teólogos sérios e comprometidos; mas seus apelos, gritos e lamentos encontram poucos ouvidos atentos. Prefere-se escutar o barulho dos instrumentos musicais e dos cantos que faz o público pular, mas que não sabe fazê-lo caminhar! Dizem que os “pulos” são obras do Espírito, mas esquecem que o Espírito que agia em Cristo deu ordens para que os discípulos andassem pelo mundo afora: “Ide...” Essa porta larga é tentadora também para o clero. Não são poucos padres e até bispos que não têm escrúpulo em esquecer a dureza da vida dos pobres e excluídos de suas comunidades e se entreterem com os que fazem shows de fé. Entre os seminaristas, futuros sacerdotes, cresceu assustadoramente tal tendência. Basta observar como grande parte deles se apresenta nas celebrações onde há concentração de pessoas, e, por outro lado, a sua quase ausência total nos bairros pobres, nas lutas pela sobrevivência dos excluídos, excluídos de tudo, até dos bens espirituais.
Diante desse quadro, que não deixa de ser preocupante, talvez seja útil perguntar o que a teologia pode fazer para recuperar a sua presença na reflexão e na ação de nossas comunidades. Sabe-se que no Brasil, na América Latina, como também pelo mundo afora, existem bons teólogos; existe muito material por eles produzido, não apenas para vender livros, mas que chama a atenção às questões atuais, propondo respostas compromissadas. Mas, será que o problema principal não está justamente nos que deveriam traduzir a teologia para uma linguagem acessível ao povo simples? Não está na ausência desses intermediários nos lugares onde deveriam levar as propostas para se tornarem interpretações ativas? A quem cabe essa tarefa? Quando o material produzido pelos teólogos permanece somente entre eles, numa pequena parcela do clero ou de algum indivíduo que se interessa pelo assunto, a teologia, como diz J. B. Libânio, torna-se incestuosa.[1] Isso é grave: seus filhos podem nascer defeituosos. O que pode significar isso para a Igreja em nossas comunidades onde já estão tantos “deficientes”?
Está mais do que na hora de voltar para o chão em que habitamos. Deus está no céu, mas nós o cremos na terra. Aliás, é o que respondemos em nossas liturgias: “Ele está no meio de nós”, mesmo que não estamos muito convencidos disso. Não tem sentido querer uma teologia lá das alturas se o que de fato interessa é o que está ao nosso redor e, é bom lembrar que a teologia é sempre fruto de seres históricos, isso é, que são limitados, e por isso, não se faz a teologia que se quer, mas aquela que se pode. Pode-se fazer teologia daquilo que é nosso, do nosso mundo que conta com a presença de Deus em Jesus Cristo. Mas esse Jesus Cristo, que nós gostamos de chamar Jesus de Nazaré, pois, denominando-o assim, expressamos melhor a sua presença na história humana, está lá onde estão os últimos dos seres humanos. A partir dos últimos, das vítimas, ele – Jesus de Nazaré – se apresenta como o Deus para todos. Se não se parte de lá é possível encontrar um deus que faz distinção entre as pessoas – não será um “Deus para todos”. E, por fim, bom é lembrar que a teologia ensina, a partir de sua experiência na práxis cristã, que o pobre e excluído não é melhor, nem moral ou religiosamente, que os demais, mas que sempre há de ser o preferido, tanto de Deus como da Igreja, por causa de sua situação desumana em que se encontra.[2] Ao se voltar para o Crucificado, o cristão, a partir do sofrimento dos muitos crucificados desta terra compreende que Deus, em Jesus de Nazaré, se coloca entre eles. Mesmo que sejam ímpios e injustos, também para eles é oferecida a esperança da salvação,[3] assim como é oferecida para todo ser humano. O acesso para essa esperança passa necessariamente pelos últimos.
Portanto, reflexão teológica a partir da práxis e práxis a partir da reflexão teológica são mais que atuais. Cabe aos teólogos fazer a sua parte, cabe, no entanto, mais ainda aos pastores – aqueles que estão sempre diante das multidões: presbíteros, ministros da Palavra, catequistas, líderes comunitários – traduzirem em linguagem e prática acessíveis aos simples, legado teológico. Ajudar os pobres e os excluídos a compreender melhor a sua fé e a transformá-la em vida, na busca da terra sem males, como Jesus de Nazaré a sonhou.

Referências bibliográficas


FERRARO, Benedito. A teologia como produto social e produtora da sociedade: a relevância da teologia, in: BAPTISTA, P. A. N. e SANCHEZ, W.L. Teologia e Sociedade: Relações, dimensões e valores éticos, São Paulo: Paulinas, 2011.
LIBANIO. J. B. O ser humano como ser histórico, in: BAPTISTA, P. A. N. e SANCHEZ, W.L. Teologia e Sociedade: Relações, dimensões e valores éticos, São Paulo: Paulinas, 2011.
MOLTMANN, Jürgen. El Dios Crucificado: La cruz de Cristo como base y critica de toda teología cristiana. Salamanca: Segueme, 1977.
[1] LIBANIO, J.B., O ser humano como ser histórico, p. 32.
[2] Cf. FERRARO, A teologia como produto social e produtora da sociedade, pp. 46-53.
[3] Cf. MOLTMANN, J. El Dios Crucificado, p. 3.

sábado, 22 de outubro de 2011

O DEUS DE JESUS CRISTO




-Reflexões sobre Lc 15,11-32 –
Frei Bruno Glaab

Introdução: é muito comum, ainda hoje, em nossa realidade, vermos pessoas escrupulosas, que têm uma imagem maldosa de Deus em sua cabeça. Pensam que Deus está sempre pronto para punir, castigar e mandar para o inferno a quem cometer algum deslize. Parece que Deus nem ama seus filhos e filhas, antes, qual carrasco cruel, anota qualquer limitação humana e um dia vai tirar satisfação. Este Deus vingativo, tão comum na mentalidade popular, parece alegrar-se com a condenação e, mais do que isto, já aqui na terra está sempre se vingando dos erros cometidos pelos fiéis. Muitas vezes, diante de tragédias, é comum ouvir aquela velha máxima: “Deus tarda, mas não falha”. Muitas pessoas, ao ouvirem que Deus é profundamente misericordioso, sentem-se mal, pois crêem que Deus deve punir, com todo rigor os erros cometidos, principalmente quando estes são da esfera do sexto mandamento da lei Deus (Ex 20,14).
Para isto certamente contribuiu uma pregação exageradamente moralista da igreja, baseada mais no Antigo Testamento, ou até num dualismo grego, que tantas vezes, falava mais alto na teologia do que a própria Bíblia. É preciso dizer que, esta idéia de Deus terrível é estranha ao Deus revelado por Jesus Cristo. De fato, no Antigo Testamento temos muitas vezes a imagem de um Deus vingador (Ex 20,5; Dt 6,14ss; Dt 8,19s). Pior que isto, Deus até se vingaria nos filhos e netos de quem transgrediu suas leis. Basta só lembrar o pecado de Davi, quando se apoderou da mulher de Urias (2Sm 11,2ss). Depois de ser alertado pelo profeta Natan (2Sm 12,1ss) o rei reconhece seu pecado e por isto é perdoado, mas seu filho deverá morrer (2,Sm 12,14). Fatos como estes nos são atestados muitas vezes na Bíblia. Além disto, no livro do Deuteronômio Deus pede que se elimine os maus, ou os idólatras (Dt 13,10s.16). Também os adúlteros e impudicos deviam ser apedrejados (Lv 20,10ss; Dt 22,22). Textos como estes, são, de fato freqüentes no Antigo Testamento[1].
No Novo Testamento ainda encontramos os reflexos desta mentalidade nos interlocutores de Jesus e mesmo entre seus discípulos. O pedido de apedrejamento da mulher adúltera (Jo 8,1-11) reflete esta teologia, bem como a pergunta dos discípulos a Jesus sobre a origem da cegueira do cego de nascença (Jo 9,2). De fato, a idéia de Deus, no Antigo Testamento é uma idéia terrível. O nome de Yahweh é santo e não pode ser pronunciado assim no mais, pois ao fazê-lo, o homem se exporia ao castigo iminente. Ao ler a palavra Yahweh, deveria-se pronunciar Adonai, o que se traduz por “meu Senhor”. Em tudo isto pode-se perceber a idéia de um Deus ciumento, vingativo e malvado.
Ainda hoje, esta idéia de Deus vingador é forte. Qualquer infortúnio que aconteça é visto como castigo. Muitas vezes, com isto se julga o próximo, quando este sofre qualquer doença, acidente ou problema. Logo se insinua que estaria pagando algum pecado cometido. As catástrofes naturais, como as secas, enchentes, granizo, etc. são vistas como punição pelos pecados. Outras vezes se alimenta a trágica neurose do escrúpulo doentio. Quem alguma vez teve a infelicidade de errar, não consegue se perdoar a si mesmo, pois imagina que Deus é um vingador e que de qualquer maneira, um dia terá de cair nas mãos deste Deus terrível para um ajuste de contas. Em vista disto, alguns penitentes voltam sempre de novo a confessar pecados há muito perdoados. Outros enveredam pelo caminho da penitência patológica, como jejuns abusados, caminhadas descalças em chão de asfalto quente nas romarias ou procissões, etc. Parece que Deus se alegraria vendo um filho ou filha se auto-massacrando. Já que Deus viu o sofrimento buscado pelo pecador, ele o perdoaria. Seria um Deus sádico[2] que se alegraria com o sofrimento humano.
Esta mentalidade é perigosa. Em primeiro lugar, pelo fato de desfigurar a imagem de Deus. Em segundo lugar, pode-se cair na teologia da retribuição. Os bons teriam sucesso em tudo e os maus sofreriam toda e qualquer sorte de malefícios. Desta forma, aqueles que tudo têm, os multimilionários deveriam ser os bons e aqueles que vivem no desemprego, na miséria, seriam os pecadores, que já aqui na terra estariam pagando seus pecados. Daí vem a idéia do: “aqui se faz, aqui se paga”. Além disto, deve-se alertar para um perigoso desvio psicológico de sado-masoquismo que se contenta em buscar o sofrimento.
Esta, no entanto, não é a imagem de Deus deixada por Jesus Cristo. Muitas vezes ele fala de Deus como oPai (Mt 6,9). Deus é o Deus dos pequenos (Mt 11,25). É o Deus dos pecadores (Lc 5,29ss). É cheio de misericórdia e se alegra com a conversão do pecador (Lc 15,7.10). Chega ao extremo de, na cruz, perdoar ao malfeitor arrependido e lhe prometer o paraíso (Lc 23,43). O Deus de Jesus não se vinga nem na hora em que seu filho é crucificado. Dito isto, vamos olhar a imagem de Deus que encontramos em uma parábola de Jesus que fala do Pai.

Deus como Pai amoroso (Lc 15,11-32)

Quando Jesus compara Deus com a figura do pai ele não o faz de acordo com o que se sabe a respeito desta figura no Antigo Testamento. Ali o pai até poderia decidir sobre a vida e a morte de seus filhos[3]. Antes, Jesus pensa Deus como o pai generoso e amigo que se alegra com a vida do filho. Mais ainda, que respeita a decisão do filho, até quando este opta pela separação (Lc 15,12). O pai da parábola não é possessivo, nem autoritário[4]. Respeita a antecipação de sua morte pelo filho que pede a herança. É um pai que segura a emoção na partida, mas a solta na volta do filho perdido (Lc 15,20). Nada exige para reintegrar o filho ao seu verdadeiro lugar[5], pois a volta do filho foi tudo para ele. Não lhe interessam recriminações, nem pedido de perdão. A volta o é que interessa. Trata-se de verdadeira imagem de amor apaixonante de um coração paterno que quer, a todo custo, a felicidade do filho. Esta figura de Deus como pai nada tem em comum com o Deus vingador do Antigo Testamento e mesmo de nossos tempos.
O filho pecador não é quem cometeu alguns pecados, mas aquele que quer viver longe e independente do pai. Quer ser autônomo, gerir sua própria vida. O convertido também não é aquele que reparou alguns atos maus. É, antes, aquele que reorientou sua vida para junto do Pai, pois reconheceu a tremenda estupidez cometida ao se afastar do pai. Agora, seu desejo é viver sempre perto do pai. Tudo isto, fez com que o pai se alegrasse e fizesse festa (15,22). Esta alegria e esta festa já estão prefigurados nas atidudes de Jesus que, diante de sua compreensão de Pai, se mistura com os que estavam em pecado e come com eles (Lc 5,29ss; 15,1ss).
O contraste entre o irmão mais velho e o pai mostra (Lc 15,25ss) a celeuma entre a concepção de Deus dos fariseus[6] e a de Jesus[7]. Estes têm a idéia de um Deus que afasta os maus dos bons e sob nenhum pretexto, quer a volta. Um verdadeiro patrão severo, para quem os filhos seriam apenas servos a executar tarefas[8]. De um lado encontra-se a mentalidade de um Deus vingativo e, portanto, o irmão é enquadrado e condenado (Lc 15,30) por esta mesma concepção de Deus. De outro lado, encontra-se a visão que Jesus veio trazer sobre o Pai. Esta visão não é condenatória, não se alegra com a desgraça, mas quer reunir numa mesma festa, tanto o filho esbanjão, quanto o suposto filho obediente. Não se sente ofendido pela saída do filho, mas se alegra com sua volta. Não se pode falar em vingança ou punição neste comtexto.
Nesta figura de pai está implícita a missão de Jesus que faz festa com os pecadores[9] e com eles inicia um novo relacionamento, enquanto que na figura do irmão mais velho, está estampado a mentalidade farisaica e a figura de um Deus vingador do Antigo Testamento que não conhece a misericórdia, mas apenas a “justiça” no seu sentido mais legalista e humano possível. Por isto mesmo, a prática de Jesus, que come e bebe, que fica na companhia dos pecadores, que se deixa tocar pela adúltera e que veio buscar o que estava perdido (Lc 19,10), é na realidade, a decorrência lógica da imagem de Pai que Jesus tem e transmite para os seus.




A conversão do filho, ou a conversão da idéia de Deus?

Muito se poderia comentar sobre a atitude dos dois filhos da parábola. Pode-se analisar a atitude do filho mais jovem, como a do filho mais velho. Mas aqui, na realidade não se quer analisar a atitude dos filhos, mas antes, a atitude do pai. Ou melhor, quer se perceber a conversão da idéia de pai. Enquanto no Antigo Testamento, como fora explanado acima, o pai era visto de forma terrível[10] e esta imagem era refletida pelos fariseus, Jesus mostra aquele que ele já havia chamado de Abba (pai) é bem diferente. Desta concepção de Deus que as pessoas têm, depende a sua ação. Em primeiro lugar, o filho mais velho (o fariseu), devido à sua visão, não chama a Deus de pai, nem ao próximo de irmão[11]. Ele não se relaciona satisfatoriamente com Deus e menos ainda com o seu próximo. De sua mentalidade brota uma maneira condenatória de se relacionar, bem como uma vida dura e fria sem alegria. Espera, à maneira comercial, um cabrito para se banquetear. Nem sabe que participa dos bens do pai. Ele nem sabe que é filho. Em segundo lugar, Jesus, a partir de sua visão inaugura uma prática que antecipa o reino. Deus é um papaizinho afetivo, alegre, festeiro. Em conseqüência, o próprio Jesus se torna festeiro, come e bebe, anda em companhia dos pecadores, etc. Afinal, o evangelho é Boa Notícia para aqueles e aquelas que querem voltar para Deus.
Além destas realidades, ainda pode-se destacar outras. A conversão, para aquele que vê Deus como um pai amoroso, é sempre uma alegria. É festa. Acabam-se as neuroses de culpa acumulada ou da incapacidade de se perdoar a si próprio. Converter-se é alegria. Reconhecer-se pecador, quando se tem um pai amoroso é relativamente fácil, pois o pai amoroso é todo bondade e quando filho se desviou desta bondade, logo sente um remorso sadio. No entanto, aquele que vê Deus como um terrível justiceiro, torna-se cumpridor de leis, mas não aprende a amar. Pior que isto, não sente a necessidade de se converter, pois nem sequer precisa disto. A observância, mais ou menos rígida, da lei, lhe dá a certeza da salvação pelos seus próprios méritos. Não necessita de se aproximar de Deus para um relacionamento afetivo em busca de perdão. Tudo é rigorosamente medido e pesado. Nada tem a mudar. Porém, sua vida é triste. Deus é patrão, o povo é empregado, a vida nada mais é que uma coleção de obrigações e proibições. Não há alegria[12].

Conclusão

Nós, homens e mulheres do século XXI temos vestígios de falsas idéias sobre Deus. Estas idéias falsas nos atrapalham em nossa caminhada de fé, tanto a nível pessoal, como comunitário. Urge limpar nossa mentalidade vétero-testamentária, ou mesmo dualista grega e permitir que a pregação e a prática de Jesus molde em nossos corações e na nossa inteligência a verdadeira imagem de Deus, para que, assim possamos viver e levar a todos a Boa Notícia do Reino, onde Deus será a alegria de todos. Ninguém melhor do que Jesus Cristo para nos falar de Deus.

Bibliografia

GORGULHO, Gilberto e ANDERSON, Ana Flora. O caminho da paz – Lucas. São Paulo: Paulinas,1980
L’EPLATTENIER, Charles. Leitura do evangelho de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993
MCKENZIE, John. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983
RIUS-CAMPS, Josep. O evangelho de Lucas- o êxodo do homem livre. São Paulo: Paulus, 1995
STORNIOLO, Ivo. Como ler o evangelho de Lucas – os pobres constroem a nova história. São Paulo: Paulinas, 1990
VARONE, François. El Dios sádico.Bilbao: Ed. Sal y Térrea, 1988
[1] Não se quer aqui fazer um estudo destes textos, apenas se quer lembrar que a idéia de Deus reflete a mentalidade de um povo em um determinado momento histórico. Assim sendo, numa cultura primitiva, onde a guerra santa era entendida como vontade divina, facilmente se projeta em Deus as idéias e valores vividos por esta mesma cultura.
[2] VARONE, François. El Dios Sádico. p.10ss.
[3] MCKENZIE, J. Pai. In: Dicionário Bíblico.
[4] L’EPLATTENIER, C. Leitura do evangelho de Lucas. p.143.
[5] L’EPLATTENIER, C. Op.cit. p.144.
[6] RIUS-CAMPS, J. O evangelho de Lucas – o êxodo do homem livre.p.254.
[7] L’EPLATTENIER, C. Op. cit. p.145.
[8] STORNIOLO, I. Como ler o evangelho de Lucas. P.143.
[9] L’EPLATTENIER, C. Op.cit. p.147.
[10] MCKENZIE, J. Pai. In: Dicionário Bíblico.
[11] GORGULHO, G. e ANDERSON, A. F.O caminho da paz – Lucas. p.186.
[12] STORNIOLO, I. Como ler o evangelho de Lucas. p.143.

sábado, 15 de outubro de 2011

OS SINAIS DOS DISCÍPULOS DE JESUS (Mc 16,17-18)

Bruno Glaab



Introdução

Diversas vezes deparei-me com pessoas, até certo ponto desconfiadas com a sua própria igreja, pois julgavam que algo estava falho. Tudo isto deve-se ao fato de certas igrejas operarem sinais que geralmente as igrejas mais históricas não realizam, como curas, expulsão de demônios, falar em línguas, etc. De fato, no Novo Testamento há referência a tais sinais que seriam operados pelos verdadeiros discípulos. Jesus recomendou uma série de sinais a seus seguidores antes de se despedir, em sua forma física.

“Estes são os sinais que acompanharão os que tiverem crido: em meu nome expulsarão demônios, falarão em novas línguas, pegarão em serpentes, e se beberem algum veneno mortífero, nada sofrerão; imporão as mãos sobre os enfermos, e estes ficarão curados”(Mc 16,17-18).

De fato, nas igrejas mais históricas não é muito comum se ouvir falar em expulsar demônios, nem tampouco fazer curas, ainda que atualmente existem movimentos que tentam trazer de volta estas práticas um tanto arcaicas. Nas igrejas de cunho pentecostal estas práticas são comuns, quase cotidianas. Seria isto um sinal de que nas igrejas históricas a ação de Jesus não se faz presente? Não estariam nelas os verdadeiros discípulos de Jesus? Expulsão de demônios, curas pelas mãos, falar em línguas e a imunidade diante do veneno e das serpentes não estariam sendo praticados pelas igrejas que, supostamente não seriam fiéis a Jesus.


1) Visão mítica dos sinais

Jesus, ou mesmo as comunidades onde os evangelhos se formaram, expressam-se com a linguagem cultural de sua época[1]. Esta linguagem, como toda a linguagem, vem marcada com os valores e conceitos culturais inerentes ao seu momento histórico. Hoje é mister tirar o véu da linguagem mítica para penetrar no cerne da questão. O que Mc 16,17-18 queria ensinar para os discípulos? Convém fazer uma análise de cada fenômeno destes:

a) Expulsar demônios[2]

Numa época em que não se tem nenhuma explicação científica para os males que afligem a humanidade, assim como doenças, deficiências físicas e mentais, pobreza, ódio, brigas, etc. era praxe atribuir tais infortúnios ao demônio. Na cosmovisão de então, tais males só podiam vir do maligno. Basta lembrar aqui a indagação dos discípulos de Jesus diante do cego: “quem pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?”(Jo 9,2). Desconhecendo completamente as causas que ocasionam a cegueira, cabia uma explicação mítica.


b) Falar em línguas

Em muitos textos do Novo Testamento se afirma o fenômeno da Glossolalia[3], ou seja, sob inspiração do Espírito Santo as pessoas falavam em línguas (At 2,1-13; At 10,44ss; 1Cor 12,10; 1Cor 14,1ss, etc. No entanto, é de se notar que também aqui estamos em terreno simbólico. O fenômeno da glossolalia era oriundo dos cultos pagãos[4], quando os coríntios se soltavam em louvores frenéticos diante de Dionísio, Baco e Diana. Quando alguns destes fiéis passaram para o cristianismo, trouxeram seus ritos juntos. São Paulo não gosta muito destes barulhentos orantes, mas não os condena (1Cor 14,1ss). No entanto, Paulo faz ver que acima de tal prática está a profecia e principalmente o amor. Chega a dizer que, se falasse todas as línguas, mas se não tivesse amor, nada seria (1Cor 13,1ss). Em At 2,1-13 este fenômeno é usado por Lucas, de forma simbólica, para ilustrar a nova realidade daqueles que agem em nome do Espírito Santo. Eles são missionários universais. Anunciam o evangelho a todos os povos e todos se entendem[5]. O que não acontecia com o exclusivismo farisaico, que separava os estrangeiros. Falar línguas é, antes, a prática da justiça para com todos os povos que se congregam em Cristo[6], no espírito Santo. É a evangelização universal, sem exclusão.


c) Imunidade ao veneno das serpentes

Há poucos anos foi noticiado na imprensa que um grupo de fanáticos, nos Estados Unidos, brincou com serpentes venenosas, na certeza de não sofrer com os males de seu veneno. Quando, no entanto, um deles foi mordido, teve de ser levado às pressas ao hospital e, por pouco não pereceu. A serpente de que fala o evangelho de Marcos não é a cobra venenosa, mas antes, devemos aqui pensar na serpente de Gn 3 que enganou Eva. Novamente estamos diante de uma forma literária mítica[7]. Aqui está o símbolo da monarquia do Egito e ao mesmo tempo da idolatria. Ou seja, quem enganou Eva não foi uma cobra falante, foi antes, a monarquia (1Sm 8,10ss) que se instalou em Israel e a idolatria que entrou devido às muitas mulheres de Salomão (1Rs 11,1-9). Também Paulo enfrentou uma serpente, quando estava sendo conduzido para Roma (At 28,3ss). O relato diz que Paulo nada sofreu. Trata-se também aqui de algo diferente do que do veneno de um ofídio. Antes, Paulo, um homem de Deus, ficou imune diante da grandeza do Império Romano e da religião que não reconhecia Jesus como o Filho de Deus. Ainda que de fato o Império Romano o assassinasse em Roma, Paulo não se dobrou diante de seu fascínio. O cristão, segundo Mc 16,17-18, não pode se deixar seduzir diante da serpente dos sistemas enganadores que desviam as pessoas da verdade.


d) Imposição das mãos

Hoje é muito difundido, até entre os cristãos, a prática da imposição das mãos com um sentido de curas. Tal prática também é atestada por Paulo (1Cor 12,4ss). Não se quer aqui entrar em questões como provar ou desaprovar o poder da mente, das mãos, etc. Isto cabe à parapsicologia e não à teologia bíblica. Apenas aqui se quer evidenciar que, quando Marcos fala da cura pelas mãos, ele tem outra idéia, pois a paranormalidade não está ao alcance de todos e o evangelho diz que todos aqueles que crêem o farão. Além do mais, os fenômenos paranormais nada tem a ver com fé, no sentido cristão. Pode, muito bem, uma pessoa atéia ter tais fenômenos e outra pessoa de muita fé não tê-los. Impor as mãos, segundo o evangelho é símbolo do agir, da bênção e da intercessão[8]. Ou seja, quem anuncia o evangelho deve agir com solidariedade. Nem todos podem fazer curas num sentido mágico ou milagroso, mas todos os que crêem em Jesus Cristo necessariamente devem agir (as mãos são símbolo do agir) em favor dos doentes, deficientes e de toda espécie de excluídos.


2) Os sinais que acompanham os cristãos

Uma vez visto que os sinais encerram uma simbologia condicionada pela cultura de seu tempo, pode-se, agora desvendar o imperativo de Mc 16,17-18. Para ser um discípulo verdadeiro de Jesus, não é necessário tentar expulsar demônios aos berros de: “em nome de Jesus, sai demônio!” Nem tampouco é preciso entrar em transe e dizer coisas desconexas como se estivesse falando em línguas. Menos ainda é preciso se expor ao veneno das cobras. E, mesmo não tendo dons paranormais de cura, pode-se ser fiel ao mandado de Jesus que pede que se imponha as mãos. Antes de pensar em milagres é preciso viver um compromisso. Aquele ou aquela que tem uma fé verdadeira em Jesus ressuscitado necessariamente deve lutar contra o mal em suas mais variadas formas (expulsar demônios), ainda que não grite ”sai demônio!”. A luta contra o mal é condição evidente. Quem anuncia Jesus e não tem compromisso na luta contra o mal cai no vazio. Ter fé também não requer falar línguas novas, mas exige falar a língua do amor (1Cor 13,1ss), aquela que não permite a exclusão do estrangeiro, do pobre, do deficiente, etc. Ter fé exige agir de tal maneira que todos se entendam, mesmo aqueles que vivem em outras culturas. Ser seguidor de Jesus não autoriza ninguém a se expor à fúria das cobras, antes, exige que não se contamine com as serpentes dos sistemas, da ideologia e da idolatria de hoje. Ser fiel a Jesus não exige fazer milagres com as mãos, exige antes, pôr as mãos a serviço dos doentes, ou seja, não é possível que um fiel seguidor de Jesus seja indiferente diante do sofrimento de tantos seres humanos que vivem à margem de tudo.


Conclusão

Seria muito fácil ser seguidor de Jesus se este desse aos discípulos poderes milagrosos e se não exigisse mais nada dos seus. Para saber se hoje, estamos no caminho certo, não precisamos procurar por sinais milagrosos. Hoje, como nos tempos da redação do evangelho de Marcos, é preciso se perguntar: a partir de nossa fé, lutamos contra o mal (demônios)? Falamos a linguagem do amor, fazendo com que todas as raças, culturas e grupos se encontrem (falar línguas)? Somos imunes às ideologias que diariamente as serpentes (ideologias) de hoje nos injetam na cabeça? Nossa fé nos leva a agir em prol dos doentes e marginalizados?

Os sinais que acompanham aqueles que crêem são o compromisso do discípulo de sempre se confrontar novamente e perceber se a fé muda nossa vida ou se somos como certos politiqueiros, cujo discurso está longe da prática. O cristão não pode separar o discurso (anúncio de Jesus) da prática. Quem anuncia Jesus deve assumir o compromisso pela vida. Isto é expulsar demônios, falar línguas, ficar imune ao veneno das serpentes e curar com as mãos. Cabe, no entanto, aos discípulos de hoje descobrir quem são os demônios a expulsar, quais as línguas a falar, quais as serpentes a enfrentar e quais os benefícios que as mãos devem trazer.

Por um lado, parece até que esta visão nos traz um conforto, já que não nos é exigido ter qualidades paranormais para sermos aut6enticos discípulos de Jesus. Por outro lado, esta visão nos deixa ruborizados, pois percebemos que temos uma missão mais complexa. Como não se trata de dons sobrenaturais ou paranormais, o texto nos envia ao compromisso crítico diante da realidade desafiadora de hoje. Não é preciso fazer milagres, mas é preciso fazer algo mais. Ter postura crítica diante do mal, usar a linguagem do amor comprometedor que nos impulsiona ao encontro de todos os povos, abrir os olhos diante da ideologia enganadora de hoje (Neoliberalismo, Nova Era, religião alienada, etc.), bem como estar sempre agindo a favor dos excluídos. Isto requer algo mais do que fazer milagres. Exige uma postura crítica em constante atualização. Portanto, um cristão que se fecha diante da realidade, que ignora os mecanismos de opressão e de injustiça, nunca será um verdadeiro discípulos de Jesus, ainda que reze muito e fale muito no nome de Jesus.


BIBLIOGRAFIA

BARBAGLIO, G. 1-2 Coríntios. São Paulo: Paulinas, 1993

BULTMANN, R. Mitologia y Nuevo Testamento. In: Ediciones de la Revista Mapocho. Madrid, Tom. IV, n.1, Vol. 10, 1965

COMBLIN, J. Atos dos Apóstolos. Petrópolis/S. Bernardo do Campo/S. Leopoldo: Vozes/Medotista/Sinodal, 1988, Vol. I

POHL, A. Evangelho de Marcos ­ - Comentário esperança. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998

RICHARD, P. O movimento de Jesus depois da ressurreição – Uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos. São Paulo: Paulinas, 1999

SCHWANTES, M. Projetos de esperança ­ - Meditações sobre o Gênesis 1-11. Petrópolis/Rio de Janeiro/São Leopoldo: Vozes/Cedi/Sinodal, 1989

[1] BULTMANN, R. Mitologia y Nuevo Testamento. p149ss.
[2] Ver GLAAB, B. Expulsar demônios é possível, mas não é tão fácil. In: Cadernos da Estef. n. 21, 1998/2, p.43ss.
[3] COMBLIN, J. Os Atos dos Apóstolos. Vol. 1, p. 87ss.
[4] BARBAGLIO, G. 1-2 Coríntios. p.79
[5] COMBLIN, J. Op. Cit. p.90-91.
[6] RICHARD, P. O movimento de Jesus depois da ressurreição. P.39ss.
[7] SCHWANTES, M. Projetos de esperança. p.81.
[8] POHL, A. Evangelho de Marcos. p.465.

QUARENTA ANOS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO



Pe. Mário Fernando Glaab


Estamos comemorando quarenta anos da Teologia da Libertação. É justo que se pare por um instante para levar em conta esse fato que tem influenciado, bem ou mal, a tantos setores das igrejas e das sociedades, não só da América Latina, como também do mundo todo.
Para alguns a Teologia da Libertação foi e é muito positiva; para outros, pelo contrário, uma grande "heresia". Justamente por apresentar um novo modo de Igreja e de sociedade onde o pobre e o oprimido, aquele que não é, tem vez e voz, onde ele é protagonista; esses últimos veem-se incluídos e valorizados enquanto os poderosos, tanto eclesiásticos como ricos em geral, veem uma ameaça. Não compreendem, difamam e condenam. Participar da paixão dos maltratados deste mundo é para teólogos e pessoas comprometidas uma honra, para outros, um perigo a ser evitado, melhor, desprezado.


Seja como for, a situação concreta de milhões de seres humanos na América Latina desafiou a consciência dos discípulos de Cristo a se posicionarem a partir das palavras e atitudes de Jesus de Nazaré que se compadeceu dos sofredores de seu tempo. Seus seguidores não podem ficar alheios aos gritos dos sofredores que clamam por justiça e liberdade também em nossos dias. O Evangelho lhes mostrou que não podiam ficar apenas no assistencialismo ou no paternalismo dando esmolas para os necessitados. Mostrou-lhes, a partir da realidade, que devim ir além: optar pelos pobres, contra sua pobreza e a favor de sua vida e liberdade. Como, no entanto, fazer isso?


Existem três maneiras de ver o pobre-oprimido: a) o que não tem; b) o que tem; e, c) o que tem força histórica. No primeiro caso é-se levado ao assistencialismo. Isso pode ajudar momentaneamente, mas não transforma – deixa como está. No segundo caso vê-se o pobre como aquele que tem força para sair de onde está. Ele deve ser inserido mercado do trabalho, para então, trabalhando, colaborar mais com o sistema e ter o seu sustento garantido. Não deixa de ser exploração sofisticada. No terceiro caso, no entanto, vê-se o pobre como sujeito de sua própria libertação. Ele tem a força para mudar o sistema injusto que mantém as pessoas em níveis tão desiguais. Essa última maneira de ver e fazer é a grande descoberta da Teologia da Libertação. Falar da libertação do pobre somente tem sentido quando ele próprio é o seu sujeito principal; os outros entram apenas como aliados. A Teologia da Libertação, ao protagonizar o pobre-oprimido, desafia a todos os seguidores de Jesus de Nazaré a se aliarem a essa luta que enfrenta o poder dos fortes-opressores.


Avanços


A Teologia da Libertação, modéstia à parte, reconhece que é uma, para não dizer a mais importante, maneira de concretizar as inovadoras idéias do Concílio Vaticano II, e isso, na realidade nua e crua de tantos sofredores explorados na América Latina. Apesar da resistência que enfrentou, ela não se conteve no Continente Latino-Americano, foi para outros cantos da Terra. Hoje ela, com acentos diferentes, está presente e atuando com força na África, na Ásia e mesmo em países do Primeiro Mundo, onde os excluídos estão descobrindo sua importância e seu protagonismo. O primeiro impulso transformador cresceu e produziu bons frutos. Entre nós surgiram as CEBs, as Pastorais Sociais e vários cristãos vindos de grupos onde se reflete a Palavra de Deus com os pés no chão se engajaram em movimentos políticos de libertação. Não se pode, porém, esquecer a grande contribuição crítica da Teologia da Libertação ao desocultar, com a sua releitura histórica, a perversidade latente no projeto de invasão que vitimou a América Latina onde o colono e o militar vinha de braço dado com o missionário. Isso, segundo a Teologia da Libertação, provocou o grande genocídio e suas consequências para os povos da América Latina. Aí está o pecado que precisa ser combatido por todas as pessoas de boa vontade.
Hoje, como a Conferência de Aparecida lembrou muito bem, os pobres-oprimidos apresentam-se com muitos rostos, talvez diferentes dos que de início se conhecia. È preciso estar atento para enxergá-los e não passar adiante para ir depressa à Igreja (como diz um canto das comunidades) sem vê-los.


Passos tomados pela Teologia da Libertação


Todavia, não basta ver os desvalidos da história, com eles deve-se encontrar saídas; ajudá-los a procurar luzes na fé em Jesus de Nazaré, no seu modo de ser e de ensinar. Assim sendo, a Teologia da Libertação parte de lá onde estão as vítimas. Sente compaixão, como Jesus sentia compaixão diante dos sofredores. Ao se compadecer toma consciência de que isso não pode ser da vontade de Deus: Deus quer a vida e a felicidade para todos os seus filhos, não a dor, a pobreza e a morte. Passa-se imediatamente à pergunta: o que fazer? É o momento de usar as capacidades racionais, procurando saídas concretas, não excluindo a Palavra de Deus interpretada com e a partir do pobre. E é bom lembrar uma descoberta iluminadora das comunidades de que "um fraco mais um fraco não são dois fracos, mas um forte!" Por último, a vida, as conquistas, mesmo pequenas, são celebradas. Todo agir eficaz merece reconhecimento e celebração. A festa acontece, não quando se senta na mesa do rico onde abundam alimentos caros produzidos pelo suor e sangue de anônimos trabalhadores, mas quando todos são reconhecidos, amados e respeitados, quando a partilha dos bens que Deus coloca ao dispor de seus filhos, através da natureza e do trabalho humano é realizada.


Esses passos mostram "pecados" ocultos, seja das estruturas injustas da sociedade como da própria Igreja. Não adianta querer esconder, mas a leitura dos Evangelhos feita pelos pobres revelou-lhes um Jesus diferente daquele que normalmente lhes foi ensinado pelas pregações piedosas e moralizantes. O confronto de nosso pobre com o Artesão ou Camponês de Nazaré mostrou a terrível contradição entre ele e a riqueza das instituições eclesiais e sociais de nossos dias. Elas pareciam estar mais perto do palácio de Herodes do que da gruta de Belém! Os pobres perceberam que Jesus libertou do pecado, sim; mas que também libertou da doença, da fome e da morte. Concluiu: hoje o seguidor de Jesus de Nazaré deve libertar também o seu semelhante da doença, da fome e da morte.


Outra reviravolta enorme que se produziu no interior das comunidades pobres foi a forma de ver a Virgem Maria. Sempre continua sendo a "doce e sempre Virgem", mas é também a profetisa que clama por justiça. O hino que ela cantou (Lc 1,47-55) não fica somente como letra para melodias que emocionam, mas se transforma em compromisso para a ação: Deus, por meio dos humildes, "derruba dos tronos os poderosos".


Fermento de transformação


A Teologia da Libertação nasceu na periferia da sociedade e também na periferia do Cristianismo. Até então, a teologia ensinada na América Latina era somente reflexo da teologia produzida na Europa. Os teólogos, apesar de sua louvável boa vontade, não conseguiam colocar a cabeça pensante onde estavam os pés no chão. Na prática, impunham para os povos de nosso continente o que se produzia em uma Igreja distante de nossa realidade. A concepção de ser reflexo lembra o espelho que reproduz (do avesso) a figura original. Pouco se aproveitava para os pobres daqui aquilo que pretendia responder a perguntas do povo da Europa, eram teologias européias, não latino-americanas.


Não poderia ser diferente: os que mantinham a teologia do centro do Mundo reagiram; muitas vezes longe dos princípios evangélicos, até. Perder o controle do produzir teológico, e mais, ser criticado por pobres da periferia, não podia ser aceito facilmente. No entanto, não convém entrar nessas questões. A história que as julgue no tempo devido.


O fermento transformador da Teologia da Libertação reavivou os pobres, melhor dizendo, os acordou e até, os ressuscitou! Quantos indivíduos que não tinham nome encontraram identidade e lugar em seus grupos e comunidades? A Igreja começou e continua sendo Igreja-rede-de-comunidades. Cada vez mais entende que, como declarou João Paulo II em 1986, a Teologia da Libertação, em condições de opressão, "não é somente útil, mas também necessária". Isto é confirmado pelo martírio de tantos líderes cristãos comprometidos, desde leigos até bispos. Aliás, os mártires, sempre com a marca registrada de serem pobres com os pobres, denunciam os autoritarismos excludentes. Suas palavras e atitudes fazem tremer o estilo autoritário. Mesmo sendo pobres, mas com consciência de cidadania eclesial, quando pensam e falam, fazem tremer até mesmo os pastores autoritários. Esses não temem o pobre que silencia, pois obedece, mas tremem diante do que pensa.


Por fim, a Teologia da Libertação contribui com todas as teologias, lembrando-lhes que não podem ser verdadeiras teologias cristãs se ao mesmo tempo não têm coragem de elevar as vozes para conclamar a todas as pessoas de boa vontade a lutar contra todo tipo de violência, exclusão e injustiça. Diz Leonardo Boff: "Uma teologia que silencia diante da tragédia de milhões de famélicos e condenados a morrer antes do tempo não tem nada a dizer sobre Deus e o mundo".


Futuro


Nos últimos anos a Teologia da Libertação parece ter sumido. Movimentos conservadores pululam por toda parte. As pregações nas igrejas tomam outros rumos, até chegando a prometer prosperidade e soluções para todos os problemas da vida a partir de devoções não comprometedoras. As liturgias aparecem no estilo triunfante. Quanto mais luzes e objetos valiosos forem exibidos, mais contentamento se produz. Esta, no entanto, não é a palavra final. Enquanto existir um pobre e um injustiçado excluído, a Teologia da Libertação deve continuar viva. Mesmo estando escondida, ela continua presente. Ninguém pode negar que as muitas formas de pobreza somente aumentaram nos últimos anos. E a Palavra de Deus continua desafiadora. Não são poucos os que a acolhem em terra fértil. Ela pode não aparecer no momento, mas logo vai ressurgir com novo vigor.


A consciência de que todos serão julgados um dia por Deus, mas pelo Deus que tomou corpo na história humana como pobre, e que irá fazê-lo enquanto pobre, há de perturbar a muitos. Que seja assim.


(Artigo baseado na palestra de Leonardo Boff proferida no 24. Congresso da Soter em Belo Horizonte no dia 120711. O texto se encontra em Religião e educação para a
cidadania Pedro A. Ribeiro de Oliveira, Geraldo de Mori, (orgs.). – São Paulo: Paulinas; Belo Horizonte: Soter, 2011, pp. 129-143).

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

O Evangelho que Satisfaz



Pe. Mário Fernando Glaab


Quanto mais se insiste de que é preciso evangelizar, tanto mais é necessário perguntar sobre o como e sobre o porquê da evangelização. Os cristãos parecem ter como obsessão a tarefa de anunciar o evangelho conforme a sua igreja o propõe. Tanto católicos como evangélicos procuram por todos os meios convencer as massas da necessidade de conhecer melhor a Jesus Cristo e a sua mensagem. Isso acontece nos templos, nas ruas, na mídia etc. Por outro lado, é também possível ver que todo esse esforço nem sempre produz os frutos esperados. Mesmo que numerosas pessoas dão ouvidos aos igualmente muitos apelos, a transformação da sociedade não é tão palpável assim como se deseja. Existem exceções, sim; mas essas não podem ser vistas como regra ordinária.


O grande teólogo e lutador incansável por um mundo mais justo e fraterno, o Pe. Comblin, falecido há pouco tempo, dizia que o evangelho, conforme é anunciado, satisfaz à burguesia e aos acomodados em geral. Eles, até gostam de ouvi-lo e fazer de conta que o vivem, mas não se transformam – continuam em sua hipocrisia. Quando a pregação das igrejas não passa de palavras bonitas sobre Deus, Jesus, os santos, os bons que dão ofertas, o céu e as graças que se podem alcançar através dos pedidos e das bênçãos, as pessoas adoram ouvir. Chegam até a colaborar, ajudam, rezam e cantam com entusiasmo; esperam confiantes porque "compraram" o pregador e a comunidade. O coração, no entanto, continua o mesmo. Não há conversão de vida. O que falta então?


Outro teólogo que se caracteriza por seu compromisso com os mais pobres e sofridos, sempre preocupado por ajudá-los a encontrar luz no Homem de Nazaré, Joh Sobrino, ensina que não há verdadeira evangelização sem levar a sério a cruz do mundo e ao mesmo tempo a cruz de Jesus. De nada adianta pregar a plenos pulmões que Jesus, com sua cruz, salvou o mundo, se essa cruz não é levada a sério nas cruzes dos que hoje pesam e matam a tantos indefesos e esquecidos. Tomar a sério a cruz do mundo e a cruz de Jesus de Nazaré ao evangelizar, eis a receita. Essa receita, não é nem um pouquinho doce ao paladar, e nunca vai satisfazer a burguesia; não satisfaz os que têm muitos bens, poder, sabedoria e fama. Mas somente essa receita pode curar. Aliás, essa é a verdadeira evangelização. E, continuando na mesma linha de pensamento, pode-se passar para os cultos que "enfeitam" nossas igrejas. De fato, a beleza dos louvores, das vestes, dos objetos sagrados e mesmo dos templos, nem sempre refletem coerência com o evangelho de Jesus de Nazaré. Também ele, o culto, nesse caso, pode satisfazer àqueles que não querem nenhum compromisso com a cruz do mundo, pois sem compromissos sérios e operosos, o culto se torna um passatempo cômodo, um culto vazio, na verdade, uma aparência de culto.


Mais do que nunca, hoje as igrejas e os pregadores do evangelho necessitam rever qual evangelho anunciam, onde experimentam sua ação transformadora, tanto em si mesma como na sociedade, caso contrário, não se vai além de fazer cócegas a ouvidos descompromissados. O anúncio da Boa Nova de Jesus Cristo é dar carne e osso à presença de Deus em meio às cruzes e aos anseios dos homens concretos, lá onde estão; isso somente faz sentido quando acontece por anunciadores comprometidos que mais do que com palavras, anunciam com o testemunho de vida.

domingo, 9 de outubro de 2011

O SER HUMANO É UM SER RELIGIOSO


O FENÔMENO RELIGIOSO




Bruno Glaab




Dizem, alguns cientistas, historiadores e antropólogos que, em todos os tempos e em todos os lugares que se conhece, nunca foi encontrado um povo que não manifestasse alguma crença em algum, ou em alguns seres superiores (GAARDER, et al, 1989, p. 9). Não importa o nome que se dá a este/s ser/es superior/es, não importa a forma de culto, mas todos os povos, em todos os tempos têm manifestações religiosas. Até mesmo aquelas pessoas que se dizem ateias, bem no fundo demonstram crer em algo.
Quando alguém diz categoricamente: "Não creio em nada" certamente está manifestando mais uma posição psicológica do que propriamente uma convicção pessoal. É ao menos isto que se observa numa análise mais profunda. É possível, no entanto, que indivíduos não manifestem nenhuma crença, mas nunca se encontrou povos que não tivessem nenhuma crença. O que ocorre muitas vezes, é que boa parte das pessoas que se dizem ateias, nunca demonstram nenhuma manifestação que obedeça aos critérios das religiões estabelecidas, manifestam isto de outra maneira. Por exemplo, quem crê em horóscopo, quem crê em amuletos, ferraduras, ou quem manifesta aquilo que as religiões estabelecidas chamam de Superstições como andar sempre com roupa azul (Roberto Carlos), não se deixar fotografar do lado esquerdo (Júlio Iglesias), etc. na realidade está demonstrando uma crença em algo que possa exercer poder sobre ele. Certa vez o grande jornalista Paulo Francis disse: "Não creio em Deus, mas minha casa está cheia de amuletos. Não consigo viver sem eles".
De fato, antes da escrita, ou mesmo da história conhecida, o Ser Humano (SH) tem suas religiões. Isto encontramos nas suas artes, como imagens, pinturas, etc. (CO-OGAN, 2007, p.6). Para que se possa falar em religião, faz-se necessário que haja um ser divino, ou uma realidade maior que a humana (Op.cit.p.8). Esta pode ser transcendente, ou mesmo imanente, pode ser múltipla, ou única. O que se quer com estas divindades, também nem sempre é idêntico (veremos ao longo dos capítulos a respeito de cada religião estudada). Assim podemos também ver outros aspectos, como, fundadores, livros sagrados, locais sagrados, etc.
A dimensão religiosa
Ainda criança, o SH começa a se questionar sobre sua origem, sobre sua vida, enfim, uma infinidade de questões que povoam a mente humana:
"Quem sou eu? Como foi que o mundo começou a existir? Que forças governam a história? Deus existe? O que acontece conosco quando morremos?" (GAARDER et al, 1989, p.9).
Hoje, muita gente se desliga das religiões estabelecidas, mas não necessariamen-te se afasta destas questões que estão na base do sentimento religioso. Por isto, pode-se afirmar que as religiões oficiais experimentam uma crise, mas não o sentimento religio-so em si está em crise. Supunham algumas mentes iluminadas que, assim que as ciên-
cias avançassem e os tabus fossem varridos, a religião desapareceria por si mesma (Karl Marx, Freud, Engels, Nietszche, Sartre, etc.). No entanto, não é isto que constatamos. O marxismo, em suas diversas vertentes, não conseguiu extinguir o sentimento religioso, nem mesmo os grandes pensadores como Freud, Nietszche, Sartre o conseguiram. O SH, no século XXI, ainda é por sua natureza, religioso.
Diante das colocações que o SH se faz sobre a transcendência, sobre a vida, ele consegue ajuntar forças e luzes para interpretar as situações desta vida, até as mais difí-ceis, como enfrentar a violência, a guerra, o terror, a injustiça e toda sorte de infortúnios que, muitas vezes leva seus agentes ativos à morte heroica. Nas ditaduras Nazi-facistas, comunistas, como nas de nossas Américas capitalistas, muita gente enfrentou o poder das armas com apenas uma certeza: vale a pena resistir, pois algo maior existe. Por este algo maior é possível sacrificar a própria vida, até a última gota de sangue.
Ao olharmos concretamente alguns grupos religiosos, percebemos gestos simbólicos que mudam quando olhamos para outros grupos. Por exemplo, um grupo de judeus com seus rolos se diferencia de um grupo de islamitas em prostração, ou de um grupo de cristãos ajoelhados, cantando cânticos jubilosos (GAARDER, et al. 1989, p. 13-14). No entanto, em todos estes gestos existe algo em comum. Na base de qualquer manifes-tação está o sentimento religioso que adquire roupagem quando este sentimento se encarna numa determinada cultura e religião. Em nosso estudo queremos desconsiderar a nossa própria experiência religiosa, não por desprezo, mas sim, para não condicionar-mos nosso estudo aos nossos critérios religiosos ou mesmo às nossas convicções religiosas.
Poderíamos dizer que o mundo, tal qual hoje o conhecemos, é movido pelo fe-nômeno religioso. Guerras, conflitos, terrorismos, violências, disputas por um lado e a-juda humanitária, gestos de bondade, de harmonia e de paz, por outro. E isto se percebe em todo o mundo. Há fanáticos e violentos nos Estados Unidos, Europa, bem como nos mais afastados povos asiáticos ou africanos. Como também encontramos pessoas que, a partir de sua religião se entregam por causas de amor: Gandi, Teresa de Calcutá, Zilda Arns, etc. Se o sentimento religioso é tão arraigado no SH, antes mesmo de caracterizar este ou aquele grupo, convém perguntar: O que é o sentimento religioso? É algo inerente ao SH, ou é apenas algo apreendido culturalmente?
Assim queremos nos posicionar frente ao fenômeno religioso, sem levar em con-ta a religião que eventualmente professamos, mas afirmar com Gaarder:
Uma atitude tolerante pode perfeitamente coexistir com uma sólida fé e com a tentativa de con-verter os outros. Porém, a tolerância não é compatível com atitudes como zombar das opiniões alheias ou se utilizar da força e de ameaças. A tolerância não limita o direito de fazer propagan-da, mas exige que esta seja feita com respeito pela opinião dos outros (GAARDER, et.al. 1989, p.a15).



A origem da religião



É difícil estudar a origem do sentimento religioso. Muitas vezes, vê-se o sentimento religioso como próprio da incapacidade de explicar o mundo de forma científica, ou plausível. Então, na ausência de uma explicação científica, se usa as explicações mí-ticas. Isto, de certa forma é correto, mas não esgota tudo. O SH primitivo explicava to-dos os fenômenos da natureza como intervenção direta dos deuses. Se choveu, foram os deuses que in interferiram; se fez estiagem, foram os deuses que se vingaram. Qualquer fenômeno com um temporal, um tsunami, tudo era visto como a mão dos deuses. Ainda hoje, para as pessoas que não são acostumadas a refletir as causas científicas, tudo pro-vêm da ação de Deus. Lembramos aqui a explicação dada por um fundamentalista dos Estados Unidos sobre o terremoto do Haiti (castigo de Deus). Outros classificam a AIDS como castigo pelos abusos sexuais. Repete-se o célebre chavão: "Deus tarda, mas não falha".
Os grandes pensadores como Darwin, Marx e outros quiseram ver as manifesta-ções religiosas como uma fuga do SH diante de sua situação. Hoje, boa parte dos cientistas já não veem o fenômeno religioso desta forma. Embora, muitas vezes o sentimen-to religioso venha revestido de fundamentalismos das mais variadas matizes, isto não significa que o sentimento religioso seja uma válvula de escape das impossibilidades de compreender o mundo, embora, às vezes possa sê-lo.
Nas modernas ciências da religião predomina a ideia de que a religião é um elemento indepen-dente, ligado ao elemento social e ao elemento psicológico, mas tem sua própria estrutura. Os ramos mais importantes das ciências da religião são a sociologia da religião, a psicologia da reli-gião, a filosofia da religião e a fenomenologia religiosa (GAARDER, et al, 1989, p.16).
Como podemos, então definir religião sem entrar no campo específico da sociologia, da psicologia, da filosofia ou fenomenologia? Existe, de fato, algo em comum, a partir do que possamos definir religião? Ou estamos tão condicionados pelos fenômenos de uma determinada religião que já não somos capazes de olhar para algo em comum? Alguns teóricos definiram religião:
A religião é um sentimento ou uma sensação de absoluta dependência (Schleiermacher).
Religião significa a relação entre o homem e o poder sobre-humano no qual ele acredita ou do qual se sente dependente. Essa relação se expressa em emoções especiais (confiança, medo), conceitos (crença) e ações (culto e ética) (Tiele).
A religião é a convicção de que existem poderes transcendentes, pessoais ou impessoais, que atu-am no mundo, e se expressa por insight, pensamento, sentimento, intenção e ação (Glasenhapp). (Apud GAARDER, et al, 1989, p.17).
Assim, junto à ideia de religião, vem a ideia de sagrado. O sagrado se expressa nas cerimônias, nos ritos, na arte, etc. Quando nos perguntamos: como viemos ao co-nhecimento, qual é a divindade, ou quem é a divindade, qual é o sentido da vida, então precisamos de cerimônias, ritos, arte e linguagem apropriada (GAARDER,1989, p.19).
Diríamos, então, o sentimento religioso é inato. O SH, por sua natureza manifes-ta uma necessidade religiosa que, sem levar em conta as convicções pessoais de cada SH, ou melhor, convicções culturais de cada SH, aflora no seu interior e, de uma forma ou outra, precisa ser compreendida. Pode ser canalizada para uma postura sadia, como pode também ser despersonalizante.



Categorias de religiões



As categorias religiosas se dividem em:
a) Monoteísmo: um só Deus;
b) Monolatria: não nega a existência de muitos deuses, mas só adora um;
c) Politeísmo: muitos deuses com funções diferentes. Deuses maiores, médios e menores;
d) Panteísmo: Deus está em tudo o que existe. Às vezes deus é visto como algo im-pessoal: alma do mundo. O SH, nesta perspectiva, quer voltar ao todo divino;
e) Animismo: natureza povoada de espíritos: espíritos dos mortos. É difícil distinguir deuses, antepassados e espíritos (GAARDER, 1989, p.21).
Crê-se que o mundo foi criado por um ser um ser primordial ou de uma matéria primordial. Nos mitos bíblicos do Gênesis 1 e 2 o mundo é criado do nada pela Palavra de Deus. Nesta mesma perspectiva se encontra o SH. Ele é criatura de Deus ou dos deu-ses. Na maioria das religiões se divide o SH em corpo e alma. Se classifica o corpo co-mo temporal e a alma como eterna e reflexo do divino. Em algumas crenças, a alma preexiste. Num dado momento se encarna num corpo, para depois da destruição deste, voltar ao seu estado espiritual. No Antigo Testamento esta perspectiva é diferente: Deus cria o SH e lhe assopra o espírito de vida (Gn 2,2ss). Na cultura hebraica não se divide corpo e alma. Já na cultura grega o SH é dividido: corpo e espírito. O primeiro é corrup-tível e o segundo é incorruptível (1Cor 15).
Quase todas as religiões creem em alguma vida pós-morte. Algumas religiões, como o judaísmo, o cristianismo e o islã, falam em salvação (Hb 9,27; Mt 25,31-46). Outras religiões falam em reencarnação, ou transmigração de espíritos. Nas religiões monoteís-tas a relação do SH com Deus se dá através da submissão: judaísmo, cristianismo, islamismo. Esta submissão também recebe o nome de conversão. Em muitas religiões afri-canas, indianas e outras, a relação se dá pela submissão aos espíritos ancestrais. Assim o SH, em seu percurso terrestre, encontra a harmonia.
Algumas religiões não requerem um compromisso ético de suas práticas. Pode-se ser devoto de alguns deuses sem, no entanto, ter de assumir uma ética decorrente desta opção. Por ex.: no mundo grego havia uma infinidade de deuses. Estes eram mais para a satisfação pessoal do crente. Nenhuma consequência ética era imposta aos fiéis deste ou daquele deus. Bastava o culto e as oferendas. Já no mundo monoteísta as exigências éticas decorrentes da opção por Deus eram severas, o que não significa dizer que muitas vezes não se praticasse a religião da mesma maneira (Is 1,10ss; Is 58,1ss; Mt 7,21ss; Tg
5,1ss). Assim, já desde o Antigo Testamento, os profetas criticam duramente a religião sem ética.



Fenomenologia Religiosa



Todas as ciências humanas podem estudar o fenômeno religioso (CROATTO, 2001, p.17). Aqui faremos um estudo a partir da História das Religiões, da Sociologia das re-ligiões, da Psicologia da Religião, da Filosofia da Religião, da Teologia das Religiões e por fim, da Fenomenologia das Religiões.
a) História das Religiões: trata-se do primeiro passo para conhecer uma religi-ão. Situa a mesma cronologicamente, bem como geograficamente. "O objeto material das religiões é, então, o conjunto dos fatos religiosos em si mesmo ou comparados enquanto manifestações da cultura humana" (Op.cit. p.18).
b) Sociologia das Religiões: Estuda a religião enquanto fato social – realidade social. "religião é uma forma fundamental de coesão social" (DURKHEIM Apud CROATTO, 2001, p.18). Nela se realiza o fato social de forma coleti-va, ou seja, o fenômeno religioso sempre se expressa em grupos.
c) Psicologia da Religião: reflete a psique humana. "A psicologia da religião parte do pressuposto de que o sentimento religioso é uma elaboração do eros básico do Ser Humano" (CROATTO, 2001, p.19). Aqui lidamos com duas vertentes:
 Freud: experiência religiosa como subproduto negativo dos con-flitos ancestrais (infância da humanidade). Ex.: o complexo de Édipo: o pai assassinado é divinizado. "a origem da religião não seria mais do que uma ilusão, similar ao sono, ao delírio, à neuro-se obsessiva, seria o reino do imaginário por excelência. Deus o-cuparia o lugar de um imaginário „ai onipotente‟ (Op.cit.p.20).
 Jung: experiência religiosa como positiva: Seria, segundo ele, o inconsciente coletivo mais arcaico do que o inconsciente indivi-dual. Seria uma memória ancestral, que deixou profundas marcas psíquicas. Seriam os arquétipos. Estes arquétipos estão no SH, quer ele os aceite ou não. São anteriores ao "eu".
d) Filosofia da religião: estuda o fenômeno religioso. Preocupa-se com o Ab-soluto, não como „ncontro com Ele, nem enquanto Deus, mas como o Ser e o fundamento de toda a realidade (Op.cit.p.21). Neste estudo não se usa a Revelação, mas sim, a razão, unicamente. "Deus (Teodicéia), o mundo (cos-movisão), o ser humano (antropologia filosófica/ética) não são consideradas nem do ponto de vista da experiência religiosa (fenomenologia), nem do pon-to de vista da fé (teologia), porém, da racionalidade analítica" (Op. Cit. p.22).
e) Teologia da Religião: a teologia parte da fé. Fala a partir da relação entre Deus e o SH. Sempre será um trabalho a partir da própria fé.
"A teologia enquanto ciência, „tiliza‟os dados da fé, mas se fundamenta (como a filosofia) na razão. Seu ponto de partida é a experiência da fé (diferente da filosofia), mas seu método é racio-nal: uma coisa é, por exemplo, a vivência da esperança escatológica; outra é a análise e a concei-tualização da esperança escatológica" (Op.cit. p.23).
f) Fenomenologia da Religião: estuda a essência dos fenômenos religiosos. O que significam estes mesmos fenômenos? Parte dos fenômenos religiosos, mas só explora seu sentido para quem os expressa.



Experiência Religiosa



Para entender a experiência religiosa vamos nos valer de categoria do Sagrado, que se expressa no símbolo, no mito e no rito.
O SH vive uma experiência humana relacional: com o outro, com o grupo, consigo, etc. Isto faz com que a experiência humana seja social e também individual. O SH está sempre em busca. Ele não está pronto. Nasce assim uma necessidade de buscar: alimento, roupa, moradia, amizade, sexo, arte, etc. sente a limitação: tudo o que tem é fragmentado. Tudo é finito. Falta-lhe sentido de muitas experiências: trabalho, injustiça, dor e morte.
Diante destes limites o SH tende para uma saída. Ele busca superar suas carên-cias, mas qual horizonte a descortinar, nunca chega ao fim último. O SH nunca está ple-namente realizado. Assim ele se abre para uma possibilidade: "Nega o limite como anu-la a necessidade. Nega a limitação do bom e a irrupção do mau. À luz dessa constata-ção, entenderemos então a relevância do tema da „alvação‟na instância religiosa (CROATTO, 2001, p.43).
A experiência religiosa se insere na experiência humana: se a experiência humana é relacional, a experiência religiosa também o é. Além de se relacionar com o mundo, se relaciona com o transcendente. Esta experiência também sempre será limita-da, o que gera um desejo de superação. Assim nasce, no âmbito da experiência religiosa, a necessidade de satisfazer o que falta: milagres, ressurreição, paz, nova ordem social, mundo novo, visão de Deus.
Nesta busca de superação religiosa, entra em cena o sagrado. Quando se quer passar do fragmentado ao total, do finito ao infinito, do limitado ao ilimitado, da aflição à esperança: ressurreição, libertação, então se usa um meio: o sagrado. Sendo a experi-ência religiosa humana, se requer o sagrado como mediação.
O SH experimenta o Ser frente ao nada; a Vida frente à morte; a força frente à impotência; a Ordem frente ao caos, o Conhecimento frente à ignorância. Desta forma, o sentimento religioso é a superação inconsciente de todas as limitações que o SH quer superar, mas humanamente não pode. Como, humanamente ele não o consegue, então o faz através do sagrado, quando ele atinge o transcendente.
Mas como podemos definir o Sagrado? O sagrado tem a mesma raiz de santo. Pode conter o sentido de separado, de reservado. Compreende dois âmbitos: humano e divino. Assim, o sagrado tem participação no mundo humano e no mundo divino. Rudol Otto chama o sagrado de "um elemento de uma qualidade absolutamente especial que se coloca fora de tudo aquilo que chamamos de racional, constituindo assim, algo inefável"
(CROATTO, 2001, p.52). O sagrado nos leva à consciência de criatura dependente que assume atitude de sumo respeito diante do tremendum que é integralmente outro misterium e que por isto nos leva ao facinans (facinante). Assim o sagrado me leva ao mistério facinante e tremendo. Para Leeuw a experiência religiosa é a experiência do transcendente. Quando o SH encontra o numen (força divina), ele considera isto sagrado (CROATTO, 2001, p.53).
Mircea Eliade caracteriza o sagrado como a ponte entre o homo religious e a rea-lidade absoluta. Ou seja, transcende o mundo, mas se manifesta no SH. Então, o SH se dirige ao transcendente e por sua vez, este, através do sagrado, se manifesta no SH.
As Hierofanias (manifestações do sagrado) se dão:
 Criatura: árvore, monte, livro, etc. = profano
 Realidade invisível: divino
 Criatura mediadora: árvore, monte, livro, etc: isto é o sagrado: objeto, enquanto revelador do divino.
Assim, uma árvore, um monte, um livro são objetos profanos, mas podem se tornar sagrados quando fazem mediação com o sagrado. Hieros (sagrado) é um objeto profano que tocou a esfera divina. O sagrado não se confundo com o divino, mas liga a ele: árvore, monte, Bíblia, imagem, etc. "O objeto sagrado é mundano, está do lado do SH, mas a hierofania (teofania) sacraliza-o" (Op. Cit. p.60). Deus se manifesta em coi-sas profanas: história sagrada, Palavra de Deus, etc. ou seja, é história, coisa de huma-nos, mas é sagrada por Deus se manifestar nela. O mesmo se diga da palavra. Desta forma entende-se que o sagrado revela o divino. Portanto, é o meio. O fim sempre será o divino. Só entendemos o sagrado a partir do transcendente.



Conclusão



O fenômeno religioso é, por sua natureza, inerente ao SH (ser humano). Ele se manifesta em todas as culturas, em todos os tempos e também, em todas as pessoas. Po-de-se tomar as mais diversas atitudes frente ao fato, mas negá-lo, não se pode.
Com esta afirmação, não se está tomando nenhuma opção pró ou contra qualquer forma de religião. O que apenas se quer afirmar é que, o SH, por sua natureza, é religio-so, ou melhor, manifesta uma dimensão religiosa.
As diversas formas de religião que conhecemos através da história, são concre-ções histórico-culturais desta dimensão religiosa inata no SH e na cultura. Aqui, sendo um estudo sobre o fenômeno religioso, vamos estudar as grandes religiões que marca-ram e marcam a história: Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Hinduísmo e Budismo. Alguns outros grupos receberão tratamento, conforme a possibilidade do tempo.



BIBLIOGRAFIA



COOGAN, Michael (Org). História, tradições e fundamentos das principais crenças religiosas. São Paulo: Publifolha, 2007
CROATTO, Severino. Uma Introdução à fenomenologia da religião. São Pau-lo: Paulinas, 2001
GAARDER, Justein et al. O livro das religiões. São Paulo: Cia das Letras, 2000

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Purgatório

Purgatorio:
divagues sobre el futuro



Frei Jerónimo Bórmida



Un teologúmeno




Estamos ante uno de los puntos controvertidos en el diálogo ecuménico. Karl Rahner le aplicaría a la doctrina sobre el purgatorio la noción de teologúmeno, que es ante todo resultado y expresión del esfuerzo por entender la fe.
Teologúmeno es una formulación teológica que no equivale de modo inmediato a una proposición dogmática que obliga a la fe, y no es necesario que el enunciado se distinga materialmente de una tesis de fe propiamente dicha.
La doctrina oficial de la Iglesia no consta ni puede constar solamente de dogmas en sentido estricto, está compuesta sobre todo de una serie de proposiciones teológicas que, sin poseer una absoluta obligatoriedad de fe, en la ha sido generalizados y aceptados en la comunidad eclesiástica.
La revelación cristiana se transmite siempre por medio de teologúmenos: habla en armonía con el saber y las creencias del momento en que es pronunciada la palabra. La biblia es solamente comprensible a la luz de la imagen del mundo que tiene el destinatario de la palabra; integra los conceptos, los valores, la imaginería, los paradigmas morales e intelectuales propios de cada tiempo y lugar.
Es lo que la DV (13) llama la admirable condescendencia de la sabiduría eterna, para que conozcamos la inefable benignidad de Dios, y de cuánta adaptación de palabra ha uso teniendo providencia y cuidado de nuestra naturaleza. Porque las palabras de Dios expresadas con lenguas humanas se han hecho semejantes al habla humana, como en otro tiempo el Verbo del Padre Eterno, tomada la carne de la debilidad humana, se hizo semejante a los hombres.
La historia de la teología equivale a la gesta de los constantes cambios de los teologúmenos. Este devenir no significa que se reconozca un día como erróneo lo que antes se tuviera por verdad absoluta, sino que supone la ley de la encarnación de los asertos a la cambiante experiencia histórica.





Según el V Concilio de Letrán (1512-1517) Lutero afirma que el purgatorio no puede probarse por la sagrada Escritura canónica. Los polemistas católicos respondieron multiplicando las pruebas de Escritura recurriendo a textos aislados de sus contextos en base a una exégesis acomodaticia, cargada de prejuicios dogmáticos.
Leemos en 2 Mac 12,40-46 que en los cadáveres de los soldados muertos en la batalla contra Gorgias se encuentran objetos del culto idolátrico, hecho severamente prohibido por la Ley. Judas espera que los soldados que han muerto en defensa de la religión y de la patria encuentren el perdón de Dios y participen en la resurrección, por lo cual hace una colecta y manda ofrecer un sacrificio por el pecado en el templo de Jerusalén.
Los justos difuntos esperan la resurrección para la vida (2 Mac 7,9.14), pero presumiblemente en el seno de Abraham. Aunque los soldados incurren en grave pecado de idolatría, Judas opina que se trata de muertes en cierto sentido martiriales, por eso ordena que se ofrezca por ellos el sacrificio expiatorio.
Pablo afirma en 1 Cor 3,10-17 5 que los apóstoles han de seleccionar cuidadosamente los materiales que emplean en la edificación de la Iglesia, pues la obra de cada cual quedará al descubierto; la manifestará el día, que ha de manifestarse por el fuego (v.13). Aquel cuya obra resista al fuego recibirá la recompensa. Si su predicación no resiste la prueba, el apóstol quedará a salvo, pero como quien pasa a través del fuego (v.14-15).
Benedicto XVI; el 12 de enero de 2011 en la catequesis de los miércoles habla de Santa Catalina de Génova, una de las referentes místicas al hablar del purgatorio. La Santa habla del camino de purificación del alma hacia la comunión plena con Dios, partiendo de su propia experiencia de profundo dolor por los pecados cometidos, en contraste con el infinito amor de Dios. No estamos, dice la santa que el purgatorio es un fuego interior, es un camino de purificación del alma hacia la comunión plena con Dios. El fuego, aclarará Benedicto es el mismo Cristo.
Un texto de la escuela rigorista de Shammai (mitad del siglo Iº d. de C.) afirma que: hay en el juicio tres categorías de hombres: unos son para la vida eterna; otros, los completamente impíos, para la vergüenza y oprobio eterno; los medianos (que no son ni del todo buenos ni del todo malos, y guardan un lugar intermedio) descienden a la gehena para ser estrujados y purificados; luego suben y son curados.
Más allá de citas textuales encontramos ciertas ideas generales clara y repetidamente enseñadas en la Biblia:
1. Sólo una absoluta integridad es digna de ser admitida a la visión de Dios.
2. No podemos negar la responsabilidad humana en el proceso de la justificación, por lo que el ser humano tiene que implicarse personalmente en la reconciliación con Dios
3. El hombre tiene que aceptar las consecuencias que se derivan de los propios pecados.
Es tan curioso como oscuro el texto de 1 Cor 15,29 que alude un rito de bautismo por los muertos, sin Pablo aclare el sentido del rito ni haga un juicio sobre él.
En 2 Tim 1,16-18 Pablo, vivo, hace una súplica en favor de un cristiano, llamado Onesíforo, que le ayudó en momentos difíciles y que, según todos los indicios, ha muerto, para que encuentre misericordia ante el Señor el día del juicio. Estamos ante un testimonio de la primera hora -las cartas pastorales- donde ya aparece la praxis de la intercesión de un cristiano vivo (Pablo) por otro ya difunto.
Por último hay que dejar bien claro que el tema del purgatorio es comprensible en el contexto de la doctrina de la gracia y las discrepancias ecuménicas parten de cómo se entienden la justificación y el perdón de los pecados.







Los testimonios abundan en oraciones (litúrgicas o privadas) por los difuntos, recorren toda la tradición de la iglesia, desde indicaciones de las catacumbas y cementerios cristianos hasta el presente.
Desde los primeros siglos era común la práctica de la oración por los muertos en las iglesias de Roma, África, Siria, Jerusalén. Es de destacar la memoria de los fieles difuntos en la celebración eucarística, atestiguada por los padres antiguos.
Tertuliano dice que el tiempo que va de la muerte a la resurrección es época de cárcel, durante la cual el alma tiene oportunidad de pagar hasta el último centavo de su deuda, liberándose para la resurrección.
Clemente de Alejandría habla de una transformación ascendente del hombre que se va transformando en un cuerpo con una perfección cada vez mayor hasta que en él se realice el grado supremo de la corporeidad neumática, el pleroma, llegando entonces a la consumación.
San Cipriano escribe en la primera mitad del siglo III: una cosa es no salir el encarcelado hasta pagar la última moneda y otra recibir sin demora el premio de la fe y del valor; una purificarse de los pecados por el tormento de largos dolores y purgar mucho tiempo por el fuego... y otra ser coronado en seguida por el Señor. A partir de allí son frecuentes las referencias al purgatorio, sobre todo en San Agustín.
En Occidente influyó en la formulación del teologúmeno el desarrollo teológico de la noción de satisfacción, especialmente a partir de San Anselmo. Dios soberano absoluto no puede hacer uso de su misericordia sin exigir una satisfacción que solo la sangre inocente de Cristo puede ofrecer. En el Medievo se distingue entre la culpa (reatus culpae) que Dios puede perdonar y la iglesia absolver y la pena (reatus poenae) que el transgresor carga sobre sus hombros hasta pagar su deuda con la sociedad y con Dios.
Los teólogos de Oriente recelan fuertemente de los hábitos mentales y del vocabulario de los colegas latinos. Los griegos entendían el purgatorio como un mero estado, no como un lugar, no aceptaban la imagen del fuego, como si fuera un infierno temporal.
Consideraban al purgatorio como un estado de purificación, en el que los difuntos maduraban para la vida eterna por los sufragios de la Iglesia, y no por la tolerancia de una pena. Los orientales piensan la justificación en clave de divinización progresiva, que va devolviendo al hombre la imagen de Dios por un proceso paulatino de purificación.
Con la Reforma, el siglo XVI trajo otro período crítico para la doctrina sobre el purgatorio.
Lutero al principio se limitó a señalar que no se halla en las Escrituras canónicas. Al parecer al principio siguió creyendo en su existencia, basándose principalmente en la tradición patrística, retractándose luego, porque la noción de purgatorio contrasta frontalmente con la concepción luterana de la justificación.
El purgatorio pone en tela de juicio la suficiencia de la satisfacción de Cristo y pone en el hombre la capacidad de operar por sí mismo la consumación del proceso salvífico. Si la justicia de Cristo es sobreabundante y cubre con exceso los más graves pecados, cómo admitir que el justificado haya de purificarse todavía, antes de su ingreso en el cielo.
Trento alude al purgatorio sólo en un canon del decreto sobre la justificación. Este canon sitúa el tema dentro de la temática del proceso de remisión de los pecados y santificación del hombre.
En el plano disciplinar Trento prohíbe exponer la doctrina del purgatorio recargándola de aditamentos inútiles, de cuestiones sutiles que no contribuyen a la edificación ni a la piedad del pueblo, y sale al paso de los rasgos curiosos o supersticiosos, en los que por desgracia abundan los predicadores.
En Roma existe un museo del purgatorio, cerrado al público en los contextos del Vaticano II. Se exhiben muestras algo macabras de las improntas dejadas por las almas atormentadas por el fuego.





Es erróneo concebir al purgatorio como una especie de infierno temporal. Más que de expiación tiene que pensarse en proceso de madurez. En el Vaticano II se habla de purificarse y no de purgarse o expiar, dejando de lado el término usado sistemáticamente en los documentos anteriores del magisterio. Estamos ante un cambio semántico intencionado.
No estamos ante una especie de campo de concentración, una cárcel en mundo de los muertos donde el hombre tiene que purgar penas que se le imponen al estilo de los sistemas carcelarios que aún hoy nos llenan de vergüenza. Espero que en el próximo siglo se hable de las cárceles como una de las abominaciones de la humanidad, así como espero que la teología y la piedad se avergüencen de sus ideas acerca del purgatorio.
Hoy los teólogos tienden a concebir esta purificación como la experiencia subversiva del encuentro con fuego purificador del rostro en llamas de Cristo (Ap 1,14 = Dan 10,6). El mismo Jesús es el fuego que juzga y purifica, que hace al hombre, conforme a su cuerpo glorificado (Rom 8,29; F1p 3,21). La purificación no se realiza por algo, sino por la fuerza transformadora del encuentro con Jesús, que acrisola purificándonos de todas nuestras escorias.
Santa Catalina de Génova (siglo XV) decía:
Yo no creo que después de la felicidad del cielo pueda haber otra felicidad que se pueda comparar con la del purgatorio... Este estado debería más bien ser ansiado que temido, pues las llamas de él son llamas de indecible nostalgia y amor.
Congar decía que en el purgatorio seremos todos místicos, es decir, todos seremos penetrados por el ardiente y purificador amor de Dios que encenderá nuestro amor para el último y definitivo encuentro.
La concepción geográfica del purgatorio cede su lugar a una comprensión procesual. Es como un proceso personal en el que la persona va superando sus contradicciones, sus egoísmos, hasta aquel momento final del encuentro con Dios. El purgatorio es el amor que purifica. El sufrimiento es el revés de la medalla del amor. Es el lado del corazón que sufre por no haber correspondido al amor a pesar de haber sido continuamente amado.



Purificar la imaginería



Hay que purificar toda la escatología (muerte, juicio, cielo, infierno, reino de Dios). Tenemos que limpiar las imágenes de la predicación y de la religiosidad populares de imágenes absurdas incompatibles con la fe en Jesús y en el Padre de Jesús. El Espíritu que hace que llamemos a Dios Abba no puede haber suscitado ideas de un Dios cruel e implacable que castiga y se venga del pecado del hombre.
La imaginación de los predicadores traumó a los fieles que se aterrorizaban ante los suplicios del purgatorio, una especie de galería de torturas cósmicas con salas con frío insoportable, de metal en fusión, como un lago de aceite en ebullición.
Además se confundía tiempo con eternidad, se hablaba de años, meses, días… Quien moría con el escapulario del Carmen tenía la promesa que María lo iba a sacar personalmente del purgatorio, a lo más tardar el sábado siguiente a la muerte. No se rían, aunque se sonrojen, de las creencias populares.
Pablo es perfectamente consciente de que no ha llegado a la meta, que no es perfecto, pero continúa su carrera por si consigo alcanzar a Cristo, aunque de hecho fue el mismo Cristo Jesús el que lo alcanzó primero.
Yo, hermanos, no creo haberlo alcanzado todavía. Pero una cosa hago: olvido lo que dejé atrás y me lanzo a lo que está por delante, corriendo hacia la meta, para alcanzar el premio a que Dios me llama desde lo alto en Cristo Jesús. Así pues, todos los perfectos tengamos estos sentimientos, y si en algo sentís de otra manera, también eso os lo declarará Dios. Por lo demás, desde el punto a donde hayamos llegado, sigamos adelante. (Flp 3, 12-16)
Pablo no habla de purgatorio sino de un proceso de crecimiento en la perfección que él mismo busca corriendo, sin haberla alcanzado todavía. Espera que Dios, que comenzó la obra buena, la termine hasta el día de Jesucristo. Pide Pablo en su oración es el amor siga de los Filipenses siga creciendo cada vez más en conocimiento perfecto y todo discernimiento, conocimiento que aquilata lo mejor de los creyentes para ser puros y sin tacha para el Día de Cristo. Los frutos de la justicia no provienen del esfuerzo humano, vienen por Jesucristo, para gloria y alabanza de Dios. (Flp 1, 6-11). Él hombre está siempre llamado a la madurez del varón perfecto en la medida plena de la edad de Cristo. (Ef 4, 13).
Cuando oramos por los difuntos tendríamos que suplicar el Señor conceda a los que están muriendo un decisión neta y clara por Dios, que tengan una rápida madurez humana y divina para que, acrisolados por el fuego de Cristo, puedan florecer totalmente a la vida en Dios.



La praxis de Jesús



Es muy difícil rastrear dicho o hechos de Jesús que aludan a la necesidad de penitencia en la otra vida. Al ladrón que lo solicita le dice que hoy estarás conmigo en el paraíso (Lc 23,43). Lo único que exige a la pecadora pública es un vete y no peques más (Jn 8, 11). En las apariciones del resucitado no encontramos un solo reproche por sus traiciones. Los llama muchachos y les prepara pescado a las brasas (Jn 21 5.9)…. Podríamos llenar muchas páginas con estas actitudes de Jesús.
Es cierto que a Judas le dice un enigmático más le valdría no haber nacido… (Mt 26-24). Es muy duro con los dirigentes del pueblo, los llama basura condenada a la quema del basural, la gehena… El texto más duro se refiere al juicio de las naciones que hará el hijo del hombre (cfr Mt 25): Cuando el Hijo del hombre venga en su gloria acompañado de todos sus ángeles, entonces se sentará en su trono de gloria. Serán congregadas delante de él todas las naciones…
El hijo del hombre juzgará a todas las naciones, es decir a todos los no judíos, a todos los paganos, los adoradores de ídolos…. No juzgara por la observancia de la ley y la pureza del culto: y él separará a los unos de los otros, como el pastor separa las ovejas de los cabritos. Pondrá las ovejas a su derecha, y los cabritos a su izquierda. A estos les dirá: Apartaos de mí, malditos, al fuego eterno preparado para el Diablo y sus ángeles. (Mt 25, 31ss). Son malditos lo que no trataron a los pobres, a los desnudos, a los presos, a los enfermos, lo ínfimo en la escala humana, son benditos lo que fueron solidarios con el hijo del hombre sacramentado en los más desposeídos de bienes, de salud, de dignidad. Es la única vez que Jesús habla de fuego eterno en un ultramundo diabólico.
No hay ninguna penitencia, solo fiesta, para el hijo que vuelve arrepentido después de haber caído en la última de las depravaciones (Iéanse las tres parábolas de la misericordia de Lc 15). Es el mismo padre que provee de todo lo necesario para participar en el banquete del Reino, comida, vestidos, alhajas…
Jesús amigo de publicanos, pecadores, prostitutas, hace Jesús lo que aprendió de la conducta de su Padre Dios. Los desafío a releer y volver a leer el evangelio para ver si encuentran alguna cita que sustente el teologúmeno del purgatorio.



La disciplina penitencial



Durante los siglos II y III la Iglesia crece, se expande numérica y geográficamente y contemporáneamente se nota una disminución en la santidad de sus miembros.
Hermas es el primero que afronta el tema de la conducta hacia los cristianos pecadores. Dice que es posible el arrepentimiento y la penitencia. Anuncia, por lo tanto, la segunda penitencia de la que excluye a los apóstatas y blasfemos contra el Señor y los traidores de los siervos de Dios. Precisa que esta oportunidad de una segunda penitencia después del bautismo es una sola, y que no debe tomarse pretexto en esta ulterior posibilidad de tomar a la ligera el pecado.
Paulatinamente se introduce la cuestión sobre la posibilidad o no de la reconciliación de ciertos pecados, y en particular los citados por la famosa tríada montanista: idolatría, homicidio y adulterio. La controversia fue muy áspera y grave.
El mismo Jesús afirma que se perdonará todo a los hijos de los hombres, los pecados y las blasfemias, por muchas que éstas sean. Luego prosigue con una afirmación sobre la que los Padres y los exégetas no se ponen de acuerdo: el que blasfeme contra el Espíritu Santo, no tendrá perdón nunca. Será reo de pecado eterno. (Mc 3,28-29)
Si un hermano pecador hace caso a la iglesia se lo debe considerar como al gentil y al publicano. (Mt. 18, 15-17). Pablo pide a los Corintios que no se juntaran con uno que se llama cristiano y es libertino, codicioso, idólatra, difamador, borracho o estafador: con uno así ni sentarse en la misma mesa. Echen del grupo de ustedes a los malvados (1 Cor. 5, 9-13)
La 1ª de Juan, la epístola de Dios Amor afirma que orar por el hermano pecador, pero hay un pecado que acarrea la muerte; no me refiero a éste cuando digo que rece (1 Jn. 5,16-17).
Los pecados leves o también llamados cotidianos, se perdonaban mediante la oración personal y comunitaria, el ayuno, las limosnas, las obras buenas, o por otras obras de piedad.
La praxis penitencial se reservaba para los pecados mortales, también llamados delitos, crímenes, pecados capitales, pecados mayores mortales, más graves... Cometidos después del bautismo eran un mal serio, profundo, que penetraba toda la persona y que por esto exigía un esfuerzo doloroso y prolongado de conversión. De la seriedad de este esfuerzo y de la sinceridad de la conversión debía ser testigo y garante toda la comunidad.
Si la oración colectiva de la comunidad era insustituible para los propios miembros caídos en pecado y sujetos a penitencia, más apreciada era aún la oración de quien había derramado su propia sangre y había sufrido por ser cristiano.
Siguiendo el ejemplo de Esteban que oró por sus propios perseguidores, los mártires oraron también por los hermanos en la fe caídos en pecado intercediendo para que tuvieran la posibilidad de volver a entrar en la comunidad.
Desde los primeros decenios del siglo III, la oración y la intercesión de los mártires es usada por los penitentes para abreviar el tiempo de su permanencia en el grupo de los penitentes. Por la intercesión de un mártir de la comunidad el obispo concedía al penitente indulgencia, es decir le perdonaba toda o parte de su permanencia en el orden de los penitentes.



Todo se puede arreglar con el precio justo



Poco a poco se va adueñando de las iglesias del imperio romano un criterio de valoración jurídica del pecado que pasa a ser transgresión de una ley más que como herida a la comunidad.
En el siglo IV la paz constantiniana y la proclamación del cristianismo como religión de estado pone en crisis la práctica penitencial dado que los convertidos afluyen en masa a integrarse a la iglesia movidos por motivos políticos y económicos y sin pasar el catecumenado.
Europa es invadida y dominada por los bárbaros que imponen sus propias concepciones en materia legal y de resarcimiento de los daños. Siempre es posible establecer una suma de dinero a modo de arreglo entre las partes y poniendo con esto fin al pleito que hay entre ofendido y ofensor. Para los germanos cada delito tiene su precio.
Aparecen entonces los llamados Penitenciales, que son catálogos de los pecados en todas sus posibles concretizaciones, incluso las más insólitas o extrañas.
A cada pecado va aneja una penitencia determinada y concretizada, indicada en mortificaciones, limosnas, peregrinaciones, ayunos y oraciones; la duración de estas penitencias es proporcional a la valoración del pecado.
La penitencia deja de ser un hecho público: el pecador confiesa en privado, y el sacerdote aplica la pena prevista para aquel pecado por el Penitencial. El pecador es absuelto tantas veces como haya pecado con tal de que satisfaga las obras previstas en las penitencias que hoy nos resultan muy curiosas. A título de ejemplo:
Si un clérigo ha formulado el proyecto escandaloso de herir o de matar a su prójimo, ayunará durante seis meses a pan y agua y se abstendrá del vino y de la carne; luego será autorizado a volver al altar (para ofrecer la misa y comulgar)...
El ladrón ayunará durante un año (si es monje); el perjuro ayunará siete años (si es monje o clérigo); el homicida (laico) ayunará tres años a pan y agua, sin llevar armas y vivirá en el exilio. Después de estos tres años, volverá a su patria y se pondrá al servicio de los familiares de la víctima, en sustitución del que fue asesinado. Así podrá ser admitido a la comunión según el juicio del confesor... El laico que se emborracha o que come y bebe vino hasta el vómito, ayunará una semana a pan y agua.
Quien mata por odio o codicia a una persona laica: 4 años de penitencia... el soldado que mata en guerra: 40 días de ayuno... quien bebe vino hasta el vómito: ayunará 40 días si es presbítero o diácono; 30 días si es religioso; 12 días si es laico... el que trabaja en domingo, ayunará 7 días.
Las penitencias previstas por los pecados se iban acumulando hasta alcanzar un número tan elevado de años, que el pecador se encontraba en la imposibilidad práctica de cumplirlas. Por lo cual surgieron equivalencias o conmutaciones penitenciales. Algunos ejemplos:
Conmutación para un ayuno de 2 días: recitar 100 salmos, unas 100 genuflexiones, o bien 1.500 genuflexiones y 7 cánticos,.. Conmutación para un ayuno de un año: pasar tres días en una iglesia, sin beber, comer ni dormir, totalmente desnudo, sin sentarse; durante este tiempo el pecador cantará salmos con los cánticos y recitará el oficio coral. Durante esta oración hará 12 genuflexiones; todo esto después de haber confesado sus pecados delante del sacerdote y delante del pueblo... otra conmutación para un ayuno de un año: hacer 12 ayunos de tres días seguidos cada uno ... o bien, ayunar 100 días a pan y agua con el rezo de la horas.
Luego apareció otra forma de conmutación o equivalencia penitencial, ligada a sucedáneos bajo forma de multas, de celebración de misas, etc. Por ejemplo: 1 unidad monetaria rescata 1 día de ayuno; el precio corriente de un esclavo (hombre o mujer) rescata 1 año de ayuno; 26 monedas de oro rescatan 1 año de ayuno; 1 misa rescata 7 días de ayuno; 30 misas rescatan 1 año de ayuno...
Esta introducción del dinero hace crisis con los reformados del siglo XVI. Un refrán alemán cantaba que cuando la moneda en la caja klingt (suena), el alma al cielo bringt (salta).
Para una valoración en términos económicos téngase presente: 100 monedas de oro dan derecho a 120 misas: 1 moneda de oro da derecho a 2 misas; 1 libra de oro da derecho a 12 misas...
El Penitencial de Vienne dice que: por su cuenta el sacerdote podrá celebrar solamente (sic) 7 misas al día; pero, si lo piden los penitentes, podrá decir cuántas sean necesarias, incluso más de 20 misas al día (sic). San Francisco prescribe en la Carta a la Orden: Amonesto por eso y exhorto en el Señor, que, en los lugares en que habitan los hermanos, se celebre sólo una misa cada día según la forma de la santa Iglesia. Y si hay en el lugar más sacerdotes, conténtese cada uno, por el amor de la caridad, con oír la celebración de otro sacerdote.
En este contexto nacen mal las indulgencias que se rigieron de hecho éstas se rigen por un cálculo matemático de penas y satisfacción.
La indulgencia se puede obtener por un acto piadoso (por ej. el canto de la Salve Regina, el rezo del Angelus visitar una iglesia o un altar, venerar las imágenes o reliquias de santos, etc.), o por una limosna en metálico para construir o restaurar iglesias, leproserías, escuelas, puentes, caminos y hacer obras de saneamiento. Manda la primera regla franciscana (Cap VIII)
los hermanos de ningún modo reciban ni hagan recibir, ni pidan ni hagan pedir, pecunia como limosna, ni dinero para algunas casas o lugares; ni acompañen a quien busca pecunia o dinero para tales lugares; pero los hermanos se pueden realizar, en favor de esos lugares, otros servicios que no sean contrarios a nuestra vida.
Cuando los papas lanzan las cruzadas aseguraba, la entrada gloriosa en la Jerusalén celeste a los que tomasen las armas para conquistar la Jerusalén terrestre. A esta gracia papal se llamó indulgencia plenaria, que suponía el estado actual de gracia, es decir, la confesión sacramental previa. Esta concesión pontificia otorgaba pleno perdón de todos los pecados y de las penas por ellos merecidas, y daba total garantía de salvación eterna, asegurando la retribución de los justos a todos los cruzados. Esta gracia la recibían los que mataban y morían en la empresa del crucificado, y se extendía a todos sus colaboradores y asesores. Recuérdese que se gana el cielo si antes se confiesa y comulga con el propósito de matar.



La entrada de paradigmas evolutivos



Tenemos que situar los teologúmenos de la escatología (reino de Dios, resurrección, cielo, infierno, purgatorio, juicio final….) dentro de los paradigmas de un cosmos en perenne evolución. Hoy es impensable una creación hecha de una vez para siempre (seis días, la mismas especies, los mismos planetas….)
El universo es el conjunto de todas las cosas existentes, es la comunión de todos los sujetos coexistentes. Estamos inmersos en un inmenso sistema de relaciones de todos con todos en todos los momentos y en todos los lugares, una red de interrelaciones, constituyendo la sinfonía universal. Cosmos y hombre constituyen sistemas abiertos, llenos de virtualidades que pueden realizarse y que están realizándose, antes y después de nuestra pequeña existencia terrena.
La ley suprema es la solidaridad entre todos los seres, somos todos interdependientes y necesitamos unos de los otros, todos habitamos el universo como un evento de comunión.
La realidad global - el todo-yo, el todo-tú, el todo-ello- es como una inmensa entidad en perenne alumbramiento-muerte, en constante crecimiento, progreso, elevación...Este sería el nuevo paradigma desde el cual se relee, se reinterpretan todas las realidades escatológicas.
Cristo da un nombre propio a la escatología cósmica: desde el principio Dios ha dispuesto a Cristo como principio, fin y subsistencia de todas las virtualidades y posibilidades de la evolución, hasta la madurez y plenitud del hombre en el cosmos en el Cristo total.
La vida terrena no termina en la muerte, la vida eterna no es un descanso inmóvil: es la sinergia, la capacidad de ser simbiótico, es decir, la capacidad de relacionarse con todos en vista del equilibrio dinámico que crea espacio para todos.
El propósito de la vida no reside en la pura y sencilla sobrevivencia, sino en la realización de las potencialidades presentes en el universo y que quieren expresarse.
En esta perspectiva se han de entender purgatorio, fin de los tiempos, resurrección futura… El cielo es puro dinamismo, como Dios y su Dynamis Santa.



Ideas finales



El purgatorio es proceso de purificación, de integración, de maduración, de crecimiento que se acelera en el momento de la muerte física. Nadie se enfrenta con el purgatorio solo, ni en la vida terrena ni en la muerte. Siempre estaremos acompañados y no solo por la fe y la oración de la Iglesia, sino por el cosmos en expansión.
No se trata de un problema que guarde relación únicamente con el alma y Dios, sino más bien de una realidad eclesial, social y cósmica. Esta es la gran intuición de la Iglesia al enseñar con firmeza la solidaridad de los vivos con los difuntos y el valor del sufragio que tienen nuestras acciones por ellos.
Se trata más bien del proceso radicalmente necesario de transformación del hombre, gracias al cual se hace capaz de Cristo, capaz de Dios y, en consecuencia, capaz de la unidad con toda la comunión de los santos y con la comunión con todos los seres del pasado, del presente y del futuro.
Mar del Plata, octubre 2011