quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O PURGATÓRIO


Divagações sobre o futuro

Frei Jerónimo Bórmida

Trad. Frei Bruno Glaab

Um Teologúmeno

Estamos diante de um dos pontos controvertidos no diálogo ecumênico. Karl Rahner aplicaria à doutrina sobre o purgatório a noção de teologúmeno, que é , antes de tudo, resultado e expressão do esforço para entender a fé.

Teologúmeno é uma formulação teológica que não equivale de modo imediato a uma proposição dogmática que obriga à fé, e não é necessário que o enunciado se distinga materialmente de uma tese de fé propriamente dita.

A doutrina oficial da Igreja não consta, nem pode constar somente de dogmas no sentido estrito, mas está composta sobretudo de uma série de proposições teológicas que, sem possuir uma absoluta obrigatoriedade de fé, ela tem sido generalizada e aceita na comunidade eclesial.

A revelação cristã se transmite sempre por meio de teologúmenos: fala em harmonia com o saber e as crenças do momento em que é pronunciada a palavra. A Bíblia somente é compreensível à luz da imagem do mundo que tem o destinatário da palavra; integra os conceitos, os valores, a imaginação, os paradigmas morais e intelectuais próprios de cada tempo e lugar. E o que a DV 13 chama a admirável condescendência da sabedoria eterna, para que conheçamos a inefável benignidade de Deus, e de quanta adaptação de palavra faz uso tendo providência e cuidade de nossa natureza. Porque as palavras de Deus expressadas com línguas humanas se tem feito semelhantes à fala humana, como em outro tempo o Verbo do Pai eterno, tomada a carne da debilidade humana, se fez semelhante aos homens.

A história da teologia equivale à gesta dos constantes câmbios dos teologúmenos. Este devir não significa que se reconheça um dia como errôneo o que antes se tinha por verdade absoluta, senão que supõe a lei da encarnação das afirmações à cambiante experiência histórica.

A doutrina da Escritura

Segundo o V Concílio de Latrão (1512-1517) Lutero afirma que o purgatório não pode ser provado pela Escritura Sagrada Canônica. Os polemistas católicos responderam multiplicando as provas de Escritura recorrendo a textos isolados de seus contextos em base a uma exegese acomodatícia, carregada de pré-juízos dogmáticos. Lemos em 2Mc 12,40-46 que nos cadáveres dos soldados mortos na batalha contra Gorgias se encontravam objetos do culto idolátrico, ato severamente proibido pela Lei. Judas espera que os soldados que tem morrido em defesa da religião e da pátria encontrem o perdão de deus e participem na ressurreição, para os quais faz uma coleta e manda oferecer um sacrifício pelo pecado no templo de Jerusalém.

Os defuntos justos esperam a ressurreição para a vida (2Mc 7,9-14), porém presumidamente no seio de Abraão. Embora os soldados incorressem em grave pecado de idolatria, Judas Macabeu opina que se trata de mortes em certo sentido martiriais, por isso ordena que se ofereça por eles o sacrifício expiatório. Paulo afirma em 1Cor 3,10-17 que os apóstolos terão de selecionar cuidadosamente os materiais que usam na edificação da igreja, pois a obra de cada qual será descoberta; se manifestará pelo fogo (v.13). aquele cuja obra resista ao fogo receberá a recompensa. Se sua pregação não resistir à prova, o apóstolo será salvo, porém como quem passa através do fogo (v.14-15).

Bento XVI, em 12 de janeiro de 2011, na catequese das quartas-feiras fala de Santa Catarina de Gênova, uma das referências místicas, ao falar do purgatório. A santa fala do caminho de purificação da alma até a comunhão plena com Deus, partindo de sua própria experiência de profunda dor pelos pecados cometidos, em contraste com o infinito amor de Deus. Não estamos, disse a santa, que o purgatório é um fogo interior, é um caminho de purificação da alma até a comunhão plena com Deus. O fogo, esclarece Bento, é o mesmo Cristo.

Um texto da escola rigorista de Shammai (metade do século Iº d.C.) afirma que: há no juízo três categorias de homens: uns são para a vida eterna; outros, os completamente ímpios, para a vergonha e opróbrio eterno; os médios (que não são nem de todo bons, nem de todo maus, e guardam um lugar intermédio) descem à Geena para ser esmagados e purificados; logo sobem e são curados. Mas além dos textos citados encontramos certas idéias gerais clara e repetidamente ensinadas na Bíblia:

1. Apenas uma absoluta integridade é digna de ser admitida à visão de Deus.

2. Não podemos negar a responsabilidade humana no processo da justificação, assim ser humano tem que envolver-se pessoalmente na reconciliação com Deus.

3. O homem tem que aceitar as consequências que se derivam dos próprios pecados.

É tão curioso como obscuro o texto de 1Cor 15,29 que alude a um rito de batismo pelos mortos, sem que Paulo esclareça o sentido deste rito, nem faz um juízo sobre ele. Em 2Tm 1,16-18 Paulo, vivo, faz uma súplica em favor de um cristão, chamado Onesíforo, que lhe ajudou em momentos difíceis e que, segundo todos os indícios, havia morrido, para que encontre misericórdia diante do senhor no dia do juízo. Estamos diante de um testemunho da primeira hora – as cartas pastorais – aonde já aparece a prática da intercessão de um cristão vivo (Paulo) por outro já falecido. Por último deve-se deixar bem claro que o tema do purgatório é compreensível no contexto da doutrina da graça e as discrepâncias ecumênicas partem de como se entendem a justificação e o perdão dos pecados.

História do Teologúmeno

Os testemunhos abundam em orações (litúrgica ou privadas) pelos defuntos, cobrem toda a tradição da Igreja, desde indicações das catacumbas e cemitérios cristãos até o presente. Desde os primeiros séculos era comum a prática da oração pelos mortos nas igrejas de Roma, África, Síria, Jerusalém. É de destacar a memória dos fiéis defuntos na celebração eucarística, atestada pelos padres antigos.

Tertuliano disse que o tempo que vai da morte até a ressurreição é uma época de cárcere, durante o qual a alma tem a oportunidade de pagar até o último centavo de sua dívida, libertando-se para a ressurreição. Clemente de Alexandria fala de uma transformação ascendente do homem que se vai transformando em um corpo com uma perfeição cada vez maior até que nele se realize o grau supremo da corporeidade pneumática, o pleroma, chegando então à consumação.

São Cipriano escreve na primeira metade do século III: uma coisa é não sair da prisão até pagar a última moeda e outra, receber sem demora, o prêmio da fé da coragem; uma, purificar-se dos pecados pelo tormento de grandes dores e purgar muito tempo pelo fogo... e outra, ser coroado em seguida pelo Senhor. A partir daí são freqüentes as refernãoencias ao purgatório, sobretudo em Santo Agostinho. No Ocidente influiu, na formulação do teologúmeno o desenvolvimento teológico da noção de satisfação, especialmente a partir de Santo Anselmo. Deus soberano absoluto não pode fazer uso de sua misericórdia sem exigir uma satisfação que só o sangue inocente de Cristo pode oferecer. Na Idade Média se dinstingue entre a culpa (reatus culpae) que Deus pode perdoar e a Igreja absolver e a pena (reatus poenae) que o transgressor carrega sobre seus ombros até pagar sua dívida com a sociedade e com Deus.

Os teologúmenos do Oriente receiam fortemente dos hábitos mentais e di vocabulário dos colegas latinos. Os gregos entendiam o purgatório como um mero estado, não como um lugar, não aceitavam a imagem de fogo, como se fosse um inferno temporal. Consideravam o purgatório como um estado de purificação, no qual os defuntos amadureciam para a vida eterna pelos sufrágios da Igreja, e não pela graça de uma sentença. Os orientais pensam a justificação em chave de divinização, que vai devolvendo ao homem a imagem de Deus por um processo paulatino de purificação.

Com a Reforma, o século XVI trouxe outro período crítico para a doutrina sobre o purgatório. Lutero, no princípio se limitou a assinalar que não se fala de purgatório nas Escrituras canônicas. Parece que no princípio seguiu crendo em sua existência, baseando-se principalmente na tradição patrística, retratando-se logo, porque a noção de purgatório contrasta frontalmente com a concepção luterana da justificação.

O purgatório põe em causa a suficiência da satisfação de Cristo e põe no homem a capacidade de operar, por si mesmo, a consumação do processo salvífico. Se a justiça de Cristo é superabundante e cobre com excesso os pecados mais graves, como admitir que o justificado ainda tenha que ser purificado, antes de seu ingresso no céu?

Trento alude ao purgatório só em um cânon do decreto sobre a justificação. Este cânon situa o tema dentro da temática do processo de remissão dos pecados e santificação do homem. No plano disciplinar Trento proíbe expor a doutrina do purgatório como questões inúteis, de questões sutis que não contribuem com a edificação, nem com a piedade do povo, e resultam em curiosidades e superstições, nas quais abundam os pregadores.

Em Roma existe um museu do purgatório, fechado ao público nos contextos do Vaticano II. Se exibem mostras macabras das marcas deixadas por almas atormentadas pelo fogo.

Teologias

É errôneo conceber o purgatório como uma espécie de inferno temporal. Mais do que em expiação, deve-se pensar em amadurecimento. No Vaticano II se fala de purificar-se e não de purgar ou expiar, deixando de lado o termo usado sistematicamente nos documentos anteriores do magistério. Estamos diante de uma troca semântica intencionada.

Não estamos diante de uma espécie de campo de concentração, um cárcere no mundo dos mortos onde o homem tem que purgar penas que se lhe impõem ao estilo dos sistemas carcerários que ainda hoje nos enchem de vergonha. Espero que no próximo século se fale dos cárceres como uma das abominações da humanidade, assim como espero que a teologia e a piedade se envergonhem de suas idéias acerca do purgatório.

Hoje os teólogos tendem a conceber esta purificação como a experiência subversiva do encontro com fogo purificador do rosto em chamas de Cristo (Ap 1,14 = Dn 10,6). O mesmo Jesus é o fogo que julga e purifica, que faz o homem, conforme ao seu corpo glorificado (Rm 8,29; Fl 3,21). A purificação não se realiza por algo, senão pela força transformadora do encontro com Jesus, que acrisola purificando-nos de todas as nossas escórias.

Santa Catarina de Gênova (séc. XV) dizia: “Eu não creio que depois da felicidade do céu possa haver outra felicidade que se possa comparar com a do purgatório... este estado deveria melhor ser ansiado do que temido, pois as chamas dele são chamas de indizível nostalgia e amor”.

Congar dizia que no purgatória seremos todos místicos, quer dizer, todos seremos penetrados pelo ardente e purificador amor de Deus que iluminará nosso amor para o último e definitivo encontro. A concepção geográfica do purgatório cede seu lugar a uma compreensão processual. É como um processo pessoal no qual a pessoa vai superando suas contradições, seus egoísmos, até aquele momento final do encontro com Deus. O purgatório é o amor que purifica. O sofrimento é o outro lado da medalha do amor. É o lado do coração que sofre por não ter correspondido ao amor apesar de haver sido continuamente amado.

Purificar as imagens

É necessário purificar toda a escatologia (morte, juízo, céu, inferno, reino de Deus). Temos que limpar as imagens da pregação e da religiosidade populares de imagens absurdas incompatíveis com a fé em Jesus e no Pai de Jesus. O Espírito que faz que chamemos a Deus de Abba não pode haver suscitado idéias de um Deus cruel e implacável que castiga e se vinga do pecado do homem.

A imaginação dos pregadores traumatizou os fiéis que se aterrorizavam diante dos suplícios do purgatório, uma espécie de galeria de torturas cósmicas com salas com frio insuportável, de metal em fusão, como um lago de azeite em ebulição.

Além do mais se confundia tempo com eternidade, se falava de anos, meses, dias... Quem morria com o escapulário do Carmo tinha a promessa que Maria o tiraria pessoalmente do purgatório, ao mais tardar, no sábado seguinte à morte. Não riam, ainda que corem, das crenças populares. Paulo é perfeitamente consciente de que não tem chegado à meta, que não é perfeito, porém continua sua corrida para conseguir alcançar a Cristo, ainda que na verdade foi Cristo Jesus quem alcançou a Paulo, antes. “Eu, irmãos, no entanto, não creio havê-lo alcançado. Mas uma coisa eu faço: esqueço o que deixei para trás e me lanço ao que vem pela frente, correndo até a meta, para alcançar o prêmio a que deus me chama desde o alto em Cristo Jesus. Assim, pois, todos os perfeitos tenhamos estes sentimentos, e se em algo sentis de outra maneira, também isto Deus lhes esclarecerá. Além disto, desde o ponto a que temos chegado, sigamos adiante” (Fl 3,12-16).

Paulo não fala de purgatório, senão de um processo de crescimento na perfeição que ele mesmo busca correndo, sem haver ainda alcançado. Espera que Deus, que começou a obra boa, a termine até o dia de Jesus Cristo. Paulo pede, em sua oração, que o amor dos filipenses siga crescendo cada vez mais em conhecimento perfeito e todo discernimento, conhecimento que avalia o melhor dos crentes para ser puro e sem mancha para o dia de Cristo. Os frutos da justiça não provém do esforço humano, vem por Jesus Cristo, para a glória e o louvor de Deus (Fl 1,6-11). O homem está sempre chamado à maturidade do varão perfeito na medida plena da idade de Cristo (Ef 4,13).

Quando oramos pelos defuntos deveríamos suplicar ao Senhor que conceda aos que estão morrendo uma decisão reta e clara por Deus, que tenham uma rápida maturação humana e divina para que, acrisolados pelo fogo de Cristo, possa, florescer totalmente na vida de Deus.

A Práxis de Jesus

É muito difícil os ditos e feitos de Jesus que aludam à necessidade de penitência na outra vida. Ao ladrão que lhe solicita, diz que hoje mesmo estarás comigo no paraíso (Lc 23,43). O único que exige à pecadora pública é que vá e não peque mais (Jo 8,11). Nas aparições do ressuscitado não encontramos uma só censura por suas traições. Os chama de moços e lhes prepara pescado nas brasas (Jo 21,5-9)... Poderíamos completar muitas páginas com estas atitudes de Jesus. É certo que disse a Judas que seria melhor não ter nascido (Mt 26,5-9)... É muito duro com os dirigentes do povo, os chama de lixo condenado ao fogo, na Geena... O texto mais duro se refere ao juízo das nações que fará o Filho do Homem (Mt 25): “quando o Filho do Homem vier em sua glória acompanhado de todos os anjos, então se sentará em seu trono de glória. Serão congregadas diante dele todas as nações... O filho do Homem julgará a todas as nações, quer dizer, a todos os judeus e a todos os pagãos, os adoradores de ídolos... Não julgará pela observância da Lei e da pureza do culto: E ele separará uns dos outros como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Porá as ovelhas à direita e os cabritos à sua esquerda. A estes, lhes dirá: ‘apartai-vos de mim, malditos, ao fogo eterno preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25,31ss). São malditos os que não trataram aos pobres, aos despidos, aos presos, aos enfermos, os últimos da escala humana. São benditos os que foram solidários com o Filho do Homem sacramentado nos mais despossuídos de bens, de saúde, de dignidade. É a única vez que Jesus fala de fogo eterno em um inferno diabólico.

Não há nenhuma penitência, só festa para o filho que volta arrependido depois de haver caído na última das depravações (leiam-se as três parábolas da misericórdia de Lc 15). É o mesmo pai que provê todo o necessário para participar no banquete do reino, comida, vestidos, jóias...

Jesus, amigo dos publicanos, pecadores, prostitutas faz o que aprendeu da conduta de seu Pai deus. Eu os desafio a reler e voltar a ler o evangelho para ver se encontram alguma alguma citação que sustente o teologúmeno do purgatório.

A disciplina penitencial

Durante os séculos II e III a Igreja cresce, se expande numérica e geograficamente e contemporaneamente se nota uma diminuição na santidade de seus membros. Hermas é o primeiro que afronta o tema da conduta dos cristãos pecadores. Disse que é possível o arrependimento e a penitência. Anuncia, portanto, a segunda penitência da qual exclui os apóstatas e blasfemos contra o Senhor e os traidores dos servos de Deus. Precisa que esta oportunidade de uma segunda penitência depois do batismo é uma só, e que não deve tornar-se pretexto nesta ulterior possibilidade de tomar o pecado leve.

Paulatinamente se introduz a questão sobre a possibilidade ou não da reconciliação de certos pecados, e em particular os citados pela famosa tríade montanista: idolatria, homicídio e adultério. A controvérsia foi muito áspera e grave.

O mesmo Jesus afirma que se perdoará a todos os filhos dos homens, os pecados e blasfêmias, por muitas que estas sejam. Logo prossegue com uma afirmação, sobre a qual os Padres e os exegetas não se põem de acordo: o que blasfema contra o Espírito Santo, não terá perdão nunca. Será réu de pecado eterno (Mc 3,28-29). Se um irmão pecador não faz caso da Igreja, deve-se considerá-lo como gentio e como publicano (Mt 18,15-17). Paulo pede aos coríntios para não se juntarem com alguém que se chama cristão e é libertino, ganancioso, idólatra, difamador, bêbado ou bandido. Com alguém assim não se deve nem sentar à mesma mesa. Eliminem do grupo de vocês os malvados (1Cor 5,9-13).

A Primeira Carta de João, a epístola de Deus amor, afirma que se deve orar pelo irmão pecador, porém há um pecado que acarreta a morte. Não me refiro a este quando digo que rezem (1Jo 5,16-17).

Os pecados leves, ou também chamados cotidianos, se perdoam mediante a oração pessoal e comunitária, o jejum, as esmolas, as boas obras, ou por outras obras de piedade. A práxis penitencial se reservava para os pecados mortais, também chamados delitos, crimes, pecados capitais, pecados maiores mortais, mais graves... cometidos depois do batismo eram um mal serio, profundo, que penetrava a toda a pessoa e que por isto exigia um esforço doloroso e prolongado de conversão. Toda a comunidade devia dar testemunho e garantia da seriedade deste esforço e da sinceridade da conversão.

Se a oração coletiva da comunidade era insubstituível para os próprios membros caídos em pecado e sujeitos à penitência, mais apreciada era ainda a oração de quem havia derramado seu próprio sangue e havia sofrido por ser cristão.

Seguindo o exemplo de Estêvão, que rezou por seus próprios perseguidores, os mártires rezavam, também, pelos irmãos na fé caídos no pecado, intercedendo para que tivessem a possibilidade de voltar a entrar na comunidade. Desde os primeiros decênios do século III, a oração e a intercessão dos mártires é usada pelos penitentes para abreviar o tempo de sua permanência no grupo dos penitentes. Pela intercessão de um mártir da comunidade o bispo concedia ao penitente a indulgência, quer dizer, lhe perdoava toda, ou parte de sua permanência na ordem dos penitentes.

Tudo se pode fixar com o preço justo

Pouco a pouco vai se apossando das igrejas do Império Romano um critério de valoração jurídica do pecado que passa a ser transgressão de uma lei, mais que como uma ferida para na comunidade. No século IV a paz constantiniana e a proclamação do cristianismo como religião de estado põem em crise a prática penitencial, uma vez que os convertidos afluem em massa a integrar-se a igreja, movidos por motivos políticos e econômicos e sem passar pelo catecumenato. A Europa é invadida pelos bárbaros que impõem suas próprias concepções em matéria legal e de ressarcimento dos danos. Sempre é possível estabelecer uma soma de dinheiro a modo de arranjo entre as partes e pondo com isto fim ao pleito que há entre o ofendido e o ofensor. Para os germanicos cada delito tem seu preço. Aparecem, então, os chamados penitenciais, que são catálogos dos pecados em todas suas possíveis concretizações, inclusive as mais insólitas e estranhas. A cada pecado vai anexo uma penitência determinada e concretizada, indicada em mortificações, esmolas, peregrinações, jejuns, orações; a duração destas penitências é proporcional à valoração do pecado.

A penitência deixa de ser um ato público: o pecador confessa em privado, e o sacerdote aplica pena prevista para aquele pecado pelo penitencial. O pecador é absolvido tantas vezes quantas tem pecado, contanto que satisfaça as obras previstas nas penitências que hoje nos resultam muito curiosas. A título de exemplo:

Se um clérigo tem formulado o projeto escandaloso de ferir ou de matar seu próximo, jejuará durante seis meses a pão e água e se absterá do vinho e da carne; logo será autorizado a voltar ao altar (para oferecer a missa e comungar); O ladrão jejuará um ano (se é monge); O perjuro jejuará sete anos (se é monge ou clérico); o homicida (leigo) jejuará três anos a pão e água, sem levar armas e viverá em exílio. Depois destes três anos, voltará a sua pátria e se porá a serviço dos familiares da vítima, em substituiçãp que que foi assassinado. Assim poderá ser admitido à comunhão segundo o juízo do confessor. O leigo que se embriaga ou come e bebe vinho até o vômito, jejuará uma semana a pão e água. Quem mata por ódio ou por ganância a uma pessoa leiga, cumprirá quatro anos de penitência. O soldado que mata em guerra fará 40 dias de jejum. Quem beber vinho até o vômito, jejuará por 40 dias se for presbítero ou diácono; 30 dias, se é religioso; 12 dias, se é leigo. Quem trabalha em domingo, jejuará 7 dias.

As penitências previstas pelos pecados iam se acumulando até alcançar um número tão elevado de anos, que o pecador se encontrava na impossibilidade prática de cumpri-las. Por isto surgiram as equivalências ou comutações penitenciais. Alguns exemplos:

Comutação para um jejum de dois dias: recitar 100 salmos, umas 100 genuflexões, ou bem, 1500 genuflexões e 7 cânticos. Comutação por um jejum de um ano: passar três dias em uma igreja, sem beber, comer, nem dormir, totalmente nu, sem sentar-se; durante este tempo o pecador cantará salmos com os cânticos e recitará o ofício coral. Durante esta oração fará 12 genuflexões. Tudo isto, depois de haver confessado seus pecados diante do sacerdote e diante do povo. Outra comutação para o jejum de um ano: fazer 12 jejuns de três dias seguidos cada ano. Ou melhor, jejuar 100 dias a pão e água com a oração das horas.

Logo apareceu outra forma de comutação ou equivalência penitencial, ligada a sucedâneos sob a forma de multas, de celebração de missas, etc. Por exemplo: uma unidade monetária resgata 1 dia de jejum; o preço corrente de um escravo (homem ou mulher) resgata um ano de jejum; Vinte e seis moedas de ouro resgatam um ano de jejum; uma missa resgata sete dias de jejum; trinta missas resgatam um ano de jejum.

Esta introdução de dinheiro fez crise com os reformadores do século XVI. Um refrão alemão cantava que quando a moeda tinia na caixa, uma alma saltava do purgatório (so bald das Geld im Beutel klingt, eine Seele aus dem Fegfeur springt – assim que o dinheiro retine na caixa, uma alma salta do purgatório)[1].

Para uma valorização em termos econômicos tenha-se presente: 100 moedas de ouro dão direito a 120 missas; uma moeda de ouro dá direito a 2 missas; uma libra de ouro dá direito a 12 missas.

O Penitencial de Viena disse que: por sua conta o sacerdote poderá celebrar somente (sic) 7 missas ao dia; porém, se o pedem os penitentes, poderá celebrar quantas sejam necessárias, inclusive mais de 20 missas ao dia (sic). São Francisco prescreve, na Carta à Ordem: “Admoesto por isso e exorto no senhor, que nos lugares em que habitam os irmãos, se celebre só uma missa cada dia segundo a forma da santa Igreja. E se houver no lugar mais sacerdotes, contente-se cada um, pelo amor da caridade, em ouvir a celebração de outro sacerdote.

Neste contexto nascem mal as indulgências que se regem de fato por um cálculo matemático de penas e satisfação. A indulgência se pode obter por um ato piedoso (por exemplo, o canto da Salve rainha, a oração do Anjo do Senhor (Angelus), visitar uma igreja ou um altar, venerar as imagens ou relíquias de santos, etc.), ou por uma esmola em metálico (moeda) para construir ou restaurar igrejas, leprosários, escolas, pontes, caminhos e fazer obras de saneamento. Manda a primeira regra franciscana (cap.VIII): “os irmãos, se podem realizar, em favor destes lugares, outros serviços que não sejam contrários à nossa vida”.

Quando os papas lançam as cruzadas, asseguravam a entrada gloriosa na Jerusalém celeste aos que tomassem as armas para conquistar a Jerusalém terrestre. A esta graça papal se chamou de indulgência plenária, que supunha o estado atual de graça, quer dizer, a confissão sacramental prévia. Esta concessão pontifícia outorgava pleno perdão de todos os pecados e das penas eles merecidos, e dava total garantia de salvação eterna, assegurando a retribuição dos justos a todos os cruzados. Esta graça a recebiam os que matavam ou morriam na empresa do crucificado, e se estendia a todos os seus colaboradores e assessore. Recorde-se que se ganha o céu se antes se confessa e comunga com o propósito de matar.

A entrada de paradigmas evolutivos

Teremos que situar os teologúmenos da escatologia (Reino de Deus, ressurreição, céu, inferno, purgatório, juízo final) dentro dos paradigmas de um cosmos em perene evolução. Hoje é impensável uma criação feita de uma vez para sempre (seis dias, as mesmas espécies, os mesmos planetas...). O universo é o conjunto de todas as coisas existentes, é a comunhão de todos os sujeitos coexistentes. Estamos imersos em um imenso sistema de relações de todos com todos em todos os momentos e em todos os lugares, uma rede de interrelações, constituindo a sinfonia universal. Cosmos e homens constituem sistemas abertos. Cheios de virtualidades que podem realizar-se e que estão se realizando, antes e depois de nossa pequena existência terrena.

A lei suprema é a solidariedade entre todos os seres, pois somos todos interdependentes e necessitamos uns dos outros. Todos habitamos o universo como um evento de comunhão. A realidade global – o todo eu, e o todo tu – é como uma imensa entidade em perene nascimento-morte, em constante crescimento, progresso, elevação... Este seria o novo paradigma, desde o qual se relê, se reinterpretam todas as realidades escatológicas.

Cristo dá um nome próprio à escatologia cósmica: desde o princípio Deus tem disposto a Cristo como princípio, fim e subsistência de todas as virtualidades e possibilidades da evolução, até a maturidade e plenitude do homem no cosmos no Cristo total. A vida terrena não termina na morte. A vida terrena não é um descanso imóvel: é a sinergia, a capacidade de ser simbiótico, quer dizer, a capacidade de relacionar-se com todos em vista do equilíbrio dinâmico que cria espaço para todos.

O propósito da vida não reside na pura e simples sobrevivência, senão, na realização das potencialidades presentes no universo e que querem expressar-se. Nesta perspectiva deve se entender purgatório, fim dos tempos, ressurreição futura... O céu é puro dinamismo, como deus e sua dynamis santa.

Ideias Finais

O purgatório é o processo de purificação, de integração, de maturação, de crescimento que se acelera no momento da morte física. Ninguém se enfrenta com o purgatório sozinho, nem na vida terrena, nem na morte. Sempre estaremos acompanhados e não somente pela fé e a oração da Igreja, senão pelo mesmo cosmos em expansão.

Não se trata de um problema que guarde relação unicamente com a alma e Deus, mas antes de uma realidade eclesial, social e cósmica. Esta é a grande intuição da Igreja ao ensinar com firmeza a solidariedade dos vivos com os defuntos e o valor do sufrágio que têm nossas ações por eles. Trata-se, antes, do processo radicalmente necessário de transformação do homem, graças à qual se torna capaz de Cristo, capaz de Deus e, em conseqüência, capaz da unidade com toda a comunhão dos santos ecom a comunhão com todos os seres do passado, do presente e do futuro.

Mar de Plata, outubro de 2011



[1] Nota do tradutor.

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