Não há dúvida de que buscamos seguir a Jesus para possuir Deus conosco. Todo esforço que fazemos para ser cristãos de fato, seguir a Jesus como nosso Mestre, é sincero. Mas isso não quer dizer que o buscamos sempre e automaticamente como ele se mostrou e pode ser encontrado. É tarefa para a teologia, às vezes urgente, esclarecer as questões, de maneira que possa ajudar a todos, no sentido de fazê-los refletir e dar-lhes condições para livremente se decidirem pelo caminho mais seguro. Portanto, ao colocar a questão que Jesus buscamos? não pretendemos questionar a boa vontade dos fiéis, mas levá-los a aprofundar a questão, para que assim, tenham mais condições de segui-lo e se comprometerem com ele e, especialmente, com o seu projeto de vida.
Jesus imaginado a partir da experiência de cada um
Toda experiência que fazemos se conserva em nossa memória pela imaginação. É impossível guardar o que experimentamos na pureza do acontecimento. Pelo fato de sermos indivíduos concretos, isto é, históricos, somos limitados pelo tempo e pelo espaço. Vivemos hoje e neste determinado lugar; e a experiência que fazemos leva as marcas dessas limitações.
Sem dúvida, os discípulos que nos transmitiram suas experiências com Jesus de Nazaré nos queriam comunicar que nele se encontraram com Deus. Experimentaram de forma única que Deus estava com aquele homem e que se “mostrava” a eles por meio dele. Os evangelistas e os demais escritores do Novo Testamento o fizeram, cada um do seu modo, apresentando o Homem de Nazaré do jeito como puderam experimentar nele o próprio Deus. Para tal, todavia, se valeram das concepções de seu tempo e de seu espaço. Isso, não resta dúvida, limitou bastante o que de fato queriam transmitir. Usaram, conforme podiam, os instrumentos que estavam ao seu dispor ao imaginarem como podiam compartilhar o que sentiram, viram, enfim, experimentaram. Certamente iremos encontrar os mais diversos acentos da figura concreta de Jesus, conforme o que mais impressionou ao escritor; para uns é Jesus amigo dos pobres, para outros, Jesus pregador da boa notícia, para outros ainda, aquele que acalma os mares etc. Entra, a essa altura, o trabalho imaginário de cada um. Aliás, o próprio Jesus mostra isso claramente quando se encanta diante da natureza e vê nela a bondade do Pai que cuida das flores, dos passarinhos (cf. Mt 6, 26-28), enfim, de tudo o que acontece no dia a dia. Também Jesus usa da imaginação, que não foi muito conforme a mentalidade religiosa da época. Enquanto o povo judeu cultivava uma imagem do Deus todo-poderoso, mas sempre pronto a punir os transgressores da Lei, Jesus com parábolas suprimiu essa idéia negativa.[1] O retrato imaginativo que ele passa do Pai é o de alguém que se preocupa com o bem de cada um, assim como com a harmonia da natureza. Isso não quer dizer que, conforme outros escritores, Jesus também não use outra imaginação, basta lembrar quando fala com autoridade, dizendo, por exemplo: “Eu sou...” (Jo 8,12; 9,5; 11,25; 14,6 etc.). Nesse caso, seu imaginativo de falar em nome do Pai, perpassa os relatos das palavras e das ações que realiza, tornando-os “sinais”.
As cristologias
Falando da imaginação que iluminava os discípulos de Jesus ao relatarem a sua experiência com ele, já se pode falar das diversas cristologias do Novo Testamento. Mas, essa conotação cristologia se fixa, de modo definitivo, quando se busca entender como as comunidades cristãs posteriores criam e anunciavam o Evangelho. Fato notável ocorre quando o cristianismo penetra na cultura greco-romana. Para que a fé da presença de Deus em Jesus, ou de que em Jesus o Filho de Deus está encarnado, fosse importante também para os de cultura grega e de cultura romana, toda linguagem necessitava de nova compreensão, isto é, da compreensão imaginativa que fosse válida para os novos interlocutores. Assim, várias cristologias surgiram. Muitas discussões sobre as novas compreensões. Não faltaram condenações, uma vez que os erros pululavam por toda a parte. Mas, aos poucos se fixaram as regras que para o momento eram o mais conveniente. Isso aconteceu nos concílios cristológicos, de Nicéia (325) e de Calcedônia (451), para falar somente dos mais importantes. O ensinamento desses concílios[2] é conhecido como doutrina clássica e comunica a visão de Jesus como Deus, em primeiro lugar. Uma vez apresentado assim, toda a leitura de suas palavras e de seus feitos vão por esse caminho: Jesus conhecia tudo por ser Deus, Jesus ensinava por seu Deus, Jesus fazia milagres por seu Deus, Jesus ressuscitou por ser Deus. Jesus como Homem não se impôs com a mesma intensidade.[3]
Cada cristologia tem sua prática correspondente. Se a compreensão imaginativa de determinada cristologia é que Jesus é Deus, consequentemente segue uma prática que lhe corresponde; assim como sendo de que Jesus é aquele que leva ao Pai, também a prática que segue essa visão lhe corresponde. Muitos séculos se passaram desde as primeiras compreensões e primeiros testemunhos. Muitas tentativas de atualização se sucederam. Entre tantas, algumas tiveram muitos sucessos, outros menos. Também aqui e agora, isto é, hoje e em nossa sociedade brasileira, existem diversas maneiras de se aproximar do mistério de Jesus Cristo. São duas, no entanto, as cristologias que mais se destacam que, conforme sua compreensão imaginativa, influenciam bastante sobre a experiência concreta dos fiéis e das igrejas. São elas: a que parte de Jesus-Deus e a que parte de Jesus que leva a Deus ou de Deus-em-Jesus.
Jesus-Deus
Essa é a mais tradicional e que responde à concepção do que foi ensinado por muitos anos. Quando no Concílio de Nicéia se afirmou que em Jesus está a natureza de Deus mesmo, isto é, que o Filho de Deus encarnado é da mesmíssima natureza de Deus, não se quis diminuir a natureza humana de Jesus. Contudo, para evitar que isso acontecesse, foi preciso que outro Concílio, o de Calcedônia, declarasse que Jesus é também humano como nós (consubstancial ao Pai e consubstancial a nós). Sem dúvida, grande conquista. Contudo, mesmo que se insistisse na única pessoa de Jesus Cristo, esta visão deu oportunidade para se fazer uma ruptura entre Deus e Homem na única pessoa. Conforme a ação, dizia-se que era de Deus; ou então, que era do Homem. Foi se impondo, aos poucos, que “o retrato de Jesus legado pelo Concílio (de Calcedônia) foi que Jesus era um indivíduo divino que também portava uma natureza humana integral”.[4]
O compromisso que segue essa visão de Jesus-Deus não pode ser outra que de se aproximar dele para “possuí-lo”. Ele é o que tem poder. Quem o possui pode esperar tudo dele. Ele vai ter que caminhar conosco, defendendo contra todos os males que existem pelo mundo afora. Ele deve perdoar, assim como deve mandar constantemente o seu Espírito para que tudo seja iluminado e que assim não se desvie do caminho certo. As orações que lhe são dirigidas são quase sempre petições. Jesus-Deus deve fazer isso e aquilo; deve proteger, deve converter os pecadores, deve, deve, deve! Igualmente, tal imaginação dá segurança para os fiéis observadores das leis. Aquele que fez tudo; cumpriu os mandamentos, pode estar certo de que Jesus o protege. Chega-se ao cúmulo de pensar que depois de participar da missa dominical o resto do dia está garantido.
Deus-em-Jesus
Deus-em-Jesus
Bem outra é a visão de Deus-em-Jesus. Sua redescoberta é mérito, em grande parte, da Teologia da Libertação. Volta-se o interesse principal para o Jesus histórico, Jesus de Nazaré, como comumente é chamado. Não se nega em nada a verdade do verdadeiro Deus e do verdadeiro Homem, mas muda-se o jeito do encontro com ele. Se no primeiro caso se vai a Jesus-Deus para “possuí-lo”, agora se vai a ele que vem, para “estar com”.
Outra maneira de entender é seguir a experiência dos apóstolos e dos demais que se encontraram com Jesus em situações bem concretas de tempo e de espaço. Eles viram um homem que os levou a algo que o transcendia, mostrou-lhes que Deus não é um Deus distante, mas um Deus próximo. Deus que é Pai. Pois, “em Jesus, a vivência do Pai constitui o núcleo mais íntimo e original de sua personalidade. Dela emana para ele uma confiança sem limites que até hoje torna inconfundível a sua figura”.[5] Ele os convidava a “experimentá-lo”, e, para segui-lo. Estabelecendo-se assim a relação mestre-discípulo. Tudo o que Jesus dizia e o que fazia levava-os à experiência do Pai que está presente com seu amor incondicional. Seguir ao Deus-em-Jesus não garante segurança, mas, muito pelo contrário, oferece risco. Contudo, a confiança na presença do Pai leva a se comprometer com o mesmo projeto de Jesus, dispondo-se a seguir seus passos e entregar a vida pela mesma causa. Deus, sem dúvida, está em Jesus, mas, ao invés de pedir, muito mais necessário é acolher. A experiência mais profunda de sua presença amorosa se faz, como Jesus fez, compartilhando a vida com os mais pobres, com os doentes e com os pecadores. Esta é a cristologia que foi e está sendo descoberta, passo a passo, em nossas comunidades. Ela encontra muita resistência de grupos tradicionais, mas avança lenta e progressivamente.
O compromisso que segue a essa visão não poderia ser outro: o discipulado. Ser discípulo não é ficar “sentado” aos pés do mestre; mas, é caminhar com ele por onde ele anda. Pode-se facilmente imaginar onde anda Jesus de Nazaré em nossos dias! Ele próprio o deixou claro quando falou das obras de misericórdia (cf. Mt 25, 31-46), porém, mais ainda quando foi levado para o Calvário. Bem mais que repetir longas orações com pedidos, o discípulo de Jesus que está com o Pai, agradece sempre de novo por ter sido convidado a segui-lo; renova sempre de novo a disposição de estar com ele por onde for. Assim, o Reino que Jesus implantou continua produzindo frutos, agora e aqui, onde está o discípulo.
Conclusão
A busca de Jesus Cristo, quando é sincera e levada a sério, não pode escapar da pergunta: a que Jesus buscamos? Está mais do que na hora, quando vemos tantas igrejas cristãs, cada um com o “seu Jesus”, tantos católicos com o “seu Jesus”, de encarar a questão. Esse Jesus que todos procuram e que afirmam possuir é de fato o Jesus que andou pelas ruas da Palestina e que foi revelado por Deus como o seu Filho Amado? Quais transformações ele provoca em seus seguidores? E estes, por sua vez, como vivem sua fé na sociedade onde estão? O Reino de justiça e paz está sendo implantado progressivamente, ou os pretensos seguidores dele se isolam nos espaços de seus templos, “só para louvar o Senhor”?
Talvez Jesus esteja bem mais próximo de nós do que pensamos. Mais do que ser possuído por nós ele quer nos possuir. Mas, para que isso aconteça, é preciso descobri-lo na humildade e na simplicidade do irmão sofredor. Lá ele não está escondido, como infelizmente alguns afirmam, mas continua a estender a mão para que a vida seja compartilhada. E, onde há partilha da vida, Deus aí está. Aí ele mostra o Pai e, já não é mais preciso dizer: “mostra-nos o Pai!” Então, a que Jesus buscamos?
Referências bibliográficas
DENZINGER, H. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral, São Paulo, Loyola e Paulinas, 2007.
HAIGHT, Roger. O Futuro da Cristologia, São Paulo, Paulinas, 2008.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Creio em Deus Pai – O Deus de Jesus como afirmação plena do humano, São Paulo, Paulinas, 1993.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a Cristologia – Sondagens para um novo paradigma, São Paulo, Paulinas, 1998.
[1] Cf. HAIGT, R. O futuro da Cristologia, p. 21.
[2] Cf. DENZINGER, H. Compêndio, 125 e 301.
[3] Interessante notar que na linguagem comum alemã Jesus é denominado Herrgott (Senhor Deus).
[4] HAIGT, R. O futuro da Cristologia, p. 20-21.
[5] QUEIRUGA, A. T. Creio em Deus Pai, p. 96.
HAIGHT, Roger. O Futuro da Cristologia, São Paulo, Paulinas, 2008.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Creio em Deus Pai – O Deus de Jesus como afirmação plena do humano, São Paulo, Paulinas, 1993.
QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a Cristologia – Sondagens para um novo paradigma, São Paulo, Paulinas, 1998.
[1] Cf. HAIGT, R. O futuro da Cristologia, p. 21.
[2] Cf. DENZINGER, H. Compêndio, 125 e 301.
[3] Interessante notar que na linguagem comum alemã Jesus é denominado Herrgott (Senhor Deus).
[4] HAIGT, R. O futuro da Cristologia, p. 20-21.
[5] QUEIRUGA, A. T. Creio em Deus Pai, p. 96.
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