quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Um Deus anônimo

                                                 Leonardo Boff

26/12/2012
Como homem, Jesus é como todos os homens: um trabalhador, carpinteiro como seu pai, José e um camponês mediterrâneo. Nem super-herói nem um especialmente piedoso que chamasse a atenção.
Era um homem de vila, tão pequena, Nazaré, que nunca é citada em todo o Antigo Testamento, talvez com uns 15 casas, não mais. Participou do destino humilhante de seu povo, subjugado pelas forças de ocupação militar romana. Nenhum documento da época falou dele, fora dos evangelhos. Não era conhecido nas rodas nem de Jerusalém e muito menos de Roma.
Como diz ironicamente o poeta Fernando Pessoa, Jesus não tinha biblioteca e não consta que entendesse de contabilidade. Ele é um anônimo no meio da massa do povo de Israel.
O fato de ter sido a encarnação do Filho de Deus não mudou em nada essa humilde situação. Deus quis se revelar nesse tipo de obscuridade e não apesar dela. E precisamos respeitar e aceitar esse caminho escolhido pelo Altíssimo.
A lição a se tirar é cristalina: qualquer situação, por humílima que seja, é suficientemente boa para encontrar Deus e para acolhermos a sua vinda nos labores cotidianos.
Jesus, disse São Paulo, não se envergonhou de ser nosso irmão. E efetivamente é nosso irmão, não só porque quis se revestir de nossa humanidade, mas é nosso irmão, principalmente por ter participado de nossa vida cotidiana, tediosa, sem brilho e renome, a vida dos anônimos.
Disso tudo tiramos essa singela lição: a vida vale a pena ser vivida assim como é – diuturna, monótona como o trabalho do dia-a-dia – e exigente na paciência de conviver com os outros, ouvi-los, compreendê-los, perdoá-los e amá-los assim como são.
Ele ainda é nosso irmão maior, enquanto dentro desta vida de luz e de sombra, viveu tão radicalmente sua humanidade a ponto de trazer Deus para dentro dela, um Deus próximo, companheiro de caminhada, energia escondida que não nos deixa desesperar face aos absurdos do mundo.
Por isso, precisamos, a despeito de tantos pensadores desesperados e céticos reafirmar: o Cristianismo não anuncia a morte de Deus. E, sim, a humanidade, a benevolência, a jovialidade e o amor incondicional de Deus. Um Deus vivo, criança que chora e ri e que nos revela a eterna juventude da vida humana perpassada pela divina.
Leonardo Boff
Semana do Natal, 26/12/2012.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012




Fonte IHU
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A terceira ''religião'' do mundo

Se a religião é realmente o ópio dos povos, perdemos esta também, já que o culto em ascensão no mundo leva o nome de ateísmo. Sim, um em cada seis pessoas sobre a Terra é sem Deus: ou ao menos não acredita no Deus de uma Igreja particular. E a Igreja dos sem fé já é a terceira da aldeia global.

A reportagem é de Angelo Aquaro e publicada no jornal La Repubblica, 19-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A primeira é a dos cristãos: 2,2 bilhões de pessoas. A segunda é uma mesquita: os muçulmanos são 1,6 bilhão. Ao terceiro lugar do pódio, portanto, sobem os não crentes: 1,1 bilhão.

O que acontece? Depois de conhecer uma sociedade sem pais, como haviam profetizado os sociólogos há 60 anos, decidimos também aposentar o Pai Eterno?

Na verdade, o quadro oferecido pelos pesquisadores do Pew, o instituto de pesquisas mais prestigiado dos Estados Unidos, é um pouco mais complexo, assim como demanda o assunto. Tanto é que a definição que os estudiosos propõem para os ateus do Terceiro Milênio é a mais flexível: unaffiliated, que poderia ser traduzida como não adeptos, aqueles justamente que não participam ativamente em um culto. Uma não Igreja muito mais do que variada.

"Os não adeptos incluem os ateus, os agnósticos e aqueles que não se identificam com nenhuma religião particular", lê-se nas 81 páginas dessa The Global Religious Landscape. Mas os autores do relatório logo se adiantam: para unir também as mãos desses bem-aventurados não adeptos. Muitos deles, de fato, "têm alguma forma de crença religiosa". O que isso significa? Que, "por exemplo, a fé em Deus ou em um poder qualquer é compartilhado por 7% dos chineses, por 30% dos franceses e por 68% dos norte-americanos", sempre na categoria "unaffiliated".

E mais: "Alguns deles participam de algum modo de certas práticas religiosas. Por exemplo, 7% na França e 27% nos Estados Unidos revelam presenciar um serviço religioso ao menos uma vez por ano". Isso naturalmente não basta para considerá-los crentes: muitas vezes, por exemplo, a participação está ligada a ritos também civis, como casamentos e funerais. Ou ao menos aquele sentimento que muito raramente os leva à igreja, à mesquita, à sinagoga, ou também ao menos aquilo que é classificado mais como busca do espírito do que sentido religioso propriamente dito.

Obviamente, as curiosidades não faltam. Ainda com relação aos não adeptos, trata-se de 16% da população mundial: a mesma porcentagem dos católicos. Três quartos vivem na Ásia: segue a Europa (12%, 134,8 milhões), a América do Norte (5%, 59,04 milhões) e o resto. Entre as grandes religiões, os hindus seguem o cristianismo e o Islã com 1 bilhão de fiéis; os budistas com meio bilhão; e os judeus, com 12 milhões. A religião do amanhã parece ser o Islã: os muçulmanos têm a média de idade mais jovem, 23 anos; judeus e budistas, a mais alta, 36.

No total, os crentes são 84% da população mundial: calculada em 2010, ano da pesquisa, 5,8 bilhões.

O professor Conrad Hackett, um dos pilares do estudo, disse ao New York Times que "é a primeira vez que os números se baseiam em uma pesquisa analisada de modo rigoroso e científico": 2.500 fontes em 232 países. Pode ser. No entanto, olhando bem, falta uma seita: com 1,01 bilhão, aquele ópio da web chamado Facebook já não superou os amigos hindus?

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012




FONTE IHU


Quarta, 12 de dezembro de 2012

Bento XVI, o Jesus histórico e a ''função insubstituível'' da exegese. Entrevista com Aristide Serra

Há 40 anos, ele estuda os Evangelhos da infância. Aristide Serra, padre servita, biblista do Marianum, tem a curiosidade do estudioso e a paixão do enamorado. Maria de Nazaré e a história do seu Filho ainda o estimulam, há 75 anos, a buscar pistas e concordâncias nos textos antigos, entre hebraico, grego, latim.

A reportagem é de Vittoria Prisciandaro, publicada na revista italiana Jesus, n. 12, de dezembro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Por isso, questionamo-lo a propósito do último livro de Bento XVI, A infância de Jesus, publicado pelas editoras Rizzoli e Livraria Editora Vaticana. O livro do pontífice, lançado no dia 21 de novembro, simultaneamente em nove línguas e em 50 países, leva a termo a trilogia iniciada em 2007 (Jesus de Nazaré) e que continuou em 2011 (Jesus de Nazaré. Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição).

"O último livro do papa não acrescenta nada de novo do ponto de vista científico", explica o padre Serra. "O Santo Padre se baseia em estudos de biblistas do passado e do presente que tratam dos Evangelhos da infância. A verdadeira nota característica é o estilo pastoral com o qual Bento XVI acompanha o leitor ao encontro com Jesus".

Serra cita em particular algumas expressões que lhe chamaram a atenção, visando a mostrar a relevância do discurso evangélico. Por exemplo, a comparação entre as duas anunciações – a de Zacarias e a de Maria – e o comentário do papa diante do contraste entre os dois cenários: "De um lado, o sacerdote, o Templo, a liturgia; de outro, uma jovem mulher desconhecida, uma pequena cidade desconhecida, uma desconhecida casa privada. O sinal da Nova Aliança é a humildade, o escondimento: o sinal do grão de mostarda. O Filho de Deus vem na humildade".

E depois acrescenta: "Desde o nascimento, Ele não pertence àquele ambiente que, segundo o mundo, é importante e poderoso. Mas justamente esse homem irrelevante e sem poder se revela como o verdadeiramente Poderoso. Portanto, faz parte do tornar-se cristão o fato de sair do âmbito daquilo que todos pensam e querem...".

Passando para a leitura do texto, Serra não se isenta e se refere ao convite feito por Bento XVI no primeiro volume da trilogia: "Este livro não é de modo algum um ato magisterial, mas é unicamente expressão da minha busca pessoal do 'rosto do Senhor'. Por isso, cada um é livre para me contradizer".

Eis a entrevista.

Sob essa ótica, como estudioso, o que o senhor integraria ao livro sobre a infância?

Permita-me fazer um destaque sobre as fontes elencadas na bibliografia. Se tirarmos as Bucólicas de Virgílio, contam-se 20 autores alemães, quatro franceses, um espanhol e um italiano, um texto divulgativo do cardeal Ravasi. A produção italiana, riquíssima na matéria, é completamente ignorada. O mesmo pode se dizer sobre a produção inglesa. Não se cita, por exemplo, Raymond Edward Brown, que escreveu uma obra fundamental dedicada ao nascimento de Jesus. O banquete é empobrecido.

A intenção do papa é demonstrar que o Jesus dos Evangelhos é precisamente o Jesus histórico: o que está escrito realmente aconteceu. Uma leitura da qual a moderna exegese histórico-crítica se distancia. O que o senhor pensa?

Os Evangelhos são textos históricos, compostos, porém, segundo as regras aplicadas naquele tempo no âmbito judaico para escrever a história. Menciono dois desses critérios. O primeiro é a contínua referência aos livros do Antigo Testamento, para atestar que Jesus veio não para abolir, mas sim para levar à perfeição a história que preparou a sua vinda. Juntamente com o Antigo Testamento, é preciso conhecer a vasta literatura judaica que comentava e atualizava esses escritos normativos para o povo de Israel. Eis, então: as obras de Filão de Alexandria, Flávio Josefo, os textos da comunidade de Qumran, os midrashîm, ou seja, comentários aos livros bíblicos por obra dos mestres de Israel, o Talmud... Essa série de escritos bíblicos e parabíblicos representam o mundo cultural em que viviam os autores dos Evangelhos.

O segundo critério, fundamental, é a Páscoa do Senhor. Em outras palavras, Mateus e Lucas transmitem recordações da infância de Jesus, interpretadas, porém, à luz da sua Ressurreição. Jesus manifestou a sua identidade plena ressuscitando dos mortos. Por isso, a Páscoa se refere ao Natal, e Natal é compreendido a partir da Páscoa. Compreende-se, nesse ponto, a função insubstituível da chamada "exegese histórico-crítica". Ela busca nos fazer compreender o texto evangélico, situando-o no mundo cultural do qual nasceu há cerca de 2.000 anos. Esgotada essa operação, entra em cena a hermenêutica, ou seja, a resposta à pergunta sempre atual: hoje, qual mensagem transmite a nós um escrito tão antigo? O livro de Bento XVI é visivelmente percorrido por essa preocupação tipicamente pastoral.

A virgindade de Maria também deve ser lida sob esta luz?

A propósito da virgindade de Maria, o papa escreve:" Parece-me normal que, só depois da morte de Maria, o mistério [do nascimento virginal] pudesse se tornar público e entrar na comum tradição do cristianismo nascente". Sobre esse assunto, eu teria uma posição um pouco diferente. Estou inclinado a pensar que a Páscoa também foi o epicentro da questão mariana, no que se refere à concepção virginal de Jesus.

Explico-me: a Ressurreição de Cristo foi anunciada segundo diversas abordagens na pregação apostólica. Um desses módulos refere-se à Ressurreição de Jesus considerada como uma "geração-parto-nascimento". O túmulo de Jesus se configurou quase como um "ventre" a partir do qual o Pai, mediante a força do Espírito Santo, gerou o Filho à vida incorruptível e eterna. No evento da Páscoa, não agiu uma força humana, mas unicamente uma energia divina. Do ventre do túmulo de Jesus, a Igreja foi induzida a se perguntar de que modo a humanidade de Jesus apareceu no outro ventre, o da sua mãe terrena, Maria, que vivia na comunidade de Jerusalém, como contam os Atos.

Nesse ponto, Maria, solicitada pela Igreja apostólica, tornou-se testemunha das "grandes coisas" realizadas pelo Poderoso no evento da encarnação. Assim percebeu-se a conexão entre o ventre "novo" do túmulo de Jesus (Mt 27, 60; Lc 23, 53; Jo 19, 41) e o ventre "virgem" de Maria (Mt 1, 18.20; Lc 1, 35). Assim teve origem o trecho evangélico da Anunciação (Lc 1; 26-38). Logo a Igreja descobriu a conexão existente entre o renascimento virginal da ressurreição e o nascimento virginal da encarnação.

Os pastores, os reis magos, a estrela: como distinguir o fato da sua interpretação?

Não é preciso ir aos extremos: tudo parábola ou tudo história. Se aproximarmos os textos com discernimento paciente, seremos capazes de jogar uma discreta luz sobre a linha de demarcação entre "fato" e "interpretação do fato". Obviamente, diversos detalhes do relato, conhecidos aos destinatários do Evangelho, continuam para nós envoltos na penumbra do enigma. Em todo caso, tenhamos em mente – e o papa se refere a isso várias vezes – que os eventos da infância de Jesus têm como fonte de informação a sua própria família, com referência privilegiada a Maria, sua mãe.

Ela – atesta Lucas duas vezes – "guardava todas essas coisas no seu coração". É de notável importância o fato de que, segundo o ensinamento da Escritura, a "memória" também é ordenada à "transmissão" dos fatos recordados. O exemplo típico são os pastores. Talvez – assim pensava o conhecido biblista alemão Joachim Jeremias – fossem os proprietários da caverna-gruta que viu o Natal do Senhor.

Mas o que conta, acima de tudo, é o fato de que Lucas vê nesses pastores uma antecipação de outros pastores: os futuros pastores da Igreja, isto é, os apóstolos, que, juntamente com os seus colaboradores, anunciam a ressurreição do Senhor. É por demais evidente a influência da Páscoa! Os pastores de Belém, segundo a pena de Lucas, tornam-se evangelizadores.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Fonte: IHU

Sexta, 23 de novembro de 2012

O Menino Jesus do papa. Artigo de Vito Mancuso

O novo livro do Papa Ratzinger é dedicado à infância de Jesus. O seu alvo é a exegese contemporânea, aquela que, privilegiando a filologia e a historiografia, evidencia o problema da historicidade das muitas narrações evangélicas. Mas a tentativa de Bento XVI está fadada ao fracasso, porque as contradições dos relatos não pode ser remediadas.

A opinião é do teólogo italiano Vito Mancuso, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 21-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Com o livro intitulado A infância de Jesus que chega às livrarias dos principais países do mundo, conclui-se a obra total de quase mil páginas em três volumes dedicada por Joseph Ratzinger a Jesus de Nazaré. Com ela, ele pretende fazer com que os católicos voltem a identificar narração evangélica e história real como ocorria até algumas décadas atrás, antes do desenvolvimento da moderna exegese histórico-crítica. O autor atinge o seu objetivo? A meu ver, não, porque se trata de uma mission impossible.

Todos amamos o Natal com a sua atmosfera de alegria e de paz, e esse novo livro do papa é uma grande ajuda para viver a sua espiritualidade. O objeto são os dois primeiros capítulos do Evangelho de Mateus e do Evangelho de Lucas, os chamados "evangelhos da infância". Por séculos, eles foram lidos como relatos históricos reais, mas hoje a exegese bíblica histórico-crítica é quase unânime em declarar o contrário. O objetivo do papa é de que os evangelhos da infância possam voltar a ser lidos como historicamente fundados.

O seu adversário de consequência não pode ser senão a exegese que, privilegiando a filologia e a historiografia, evidencia a problemática historicidade de muitas narrações evangélicas. Com isso, os exegetas não querem dizer que os Evangelhos são falsos, mas só que, com base neles, não se pode reconstruir com certeza a história de Jesus, muito menos a do seu nascimento, e que é preciso lê-los sabendo que a finalidade é teológico-espiritual e não historiográfica.

Nos Evangelhos, há dados historicamente certos ao lado de elaborações simbólicas historicamente não confiáveis, e a tarefa da exegese histórico-crítica consiste em distinguir as duas dimensões. A consequência inevitável, porém, é que o Jesus dos Evangelhos não coincide com o Jesus da história, isto é, o exato oposto da intenção programática de Ratzinger declarado no primeiro volume: "Apresentar o Jesus dos Evangelhos como o Jesus real, como o Jesus histórico em sentido propriamente dito". E, precisamente por isso, também no novo livro assim como nos anteriores, o papa dirige ataques recorrentes à exegese histórico-crítica (cf., por exemplo, as páginas 25, 60, 62, 78, 123).

Mas, como todos aqueles que, antes dele, tentaram harmonizar os relatos evangélicos, Ratzinger também sobrevoa sobre as contradições entre os relatos de Mateus e de Lucas. São eles que tornam impossível uma história da infância de Jesus digna desse nome, como consideram estudiosos do calibre de Brown, Sanders, Meier, Dunn, Barbaglio, Fabris, Maggioni, Jossa, Ortensio da Spinetoli, Pesce e muitos outros.

Certamente, entre Mateus e Lucas, há elementos comuns: a identidade dos pais, o anúncio evangélico, a concepção de Maria sem relações sexuais com o marido, o nascimento em Belém sob o reinado de Herodes, a transferência para Nazaré. Mas também há discordâncias que não podem ser harmonizadas: antes do nascimento de Jesus, Maria e José ou residiam em Nazaré (Lucas) ou residiam em Belém (Mateus); a sua viagem de Nazaré a Belém ou aconteceu (Lc) ou não aconteceu (Mt); Jesus nasceu ou na casa dos pais (Mt) ou em uma manjedoura (Lc); o massacre das crianças de Belém ou aconteceu (Mt) ou não aconteceu (Lc); os pais ou fugiram para o Egito para salvar o menino dos soldados de Herodes (Mt) ou foram ao templo de Jerusalém para a circuncisão sem que os soldados de Herodes se preocupassem com o menino (Lc); a família de Belém ou voltou logo para casa em Nazaré da Galileia (Lc) ou foi para Nazaré só depois de ter estado no Egito e pela primeira vez (Mt).

Além disso, é oposta a atmosfera abrangente que envolve o nascimento de Jesus, real e trágica em Mateus, simples e bucólica em Lucas: a quem dar crédito? Na mente dos fiéis, os dois relatos se misturam sem distinguir os elementos de um e de outro, e o papa promove essa tradicional mistura acrítica, mas a exigência historiográfica não o permite; os dados são ou como Mateus os apresenta ou como Lucas os apresenta, ou nem de um modo nem de outro; em todo caso, não são harmonizáveis. Portanto, se fosse verdade, como escreve Ratzinger, que Mateus e Lucas "queriam escrever história, história real, acontecida" (p. 26), encontraríamos realmente diante de um belo problema, porque um dos dois evangelistas seguramente estaria errado.

Além disso, está a questão de como a notícia da concepção virginal chegou aos evangelistas. O papa se inclina pela "tradição familiar" (p. 65), no sentido de que teria sido Maria que comunicou aos discípulos o extraordinário evento de ter concebido o filho sem relações sexuais. Mas, se realmente tivesse sido assim, não se explicaria a escassa atenção do Novo Testamento a Maria, incluindo o livro dos Atos dos Apóstolos escrito justamente por Lucas, que a menciona somente uma vez e quase de passagem, enquanto dá muito mais espaço não só a Pedro e a Paulo, mas até mesmo a personagens secundários como Lídia, a comerciante de púrpura.

É crível, talvez, que Lucas, sabendo diretamente de Maria sobre a concepção extraordinária de Jesus, a ignore completamente nos Atos, sem escrever nada sobre onde ela vivia, o que fazia, como terminou a sua vida terrena e sem nunca ter lhe dado a palavra sequer uma vez? Tudo isso leva a duvidar muito do que o papa sustenta.

A realidade é que os Evangelhos da infância apresentam um perfil histórico geral bastante improvável. O dado histórico seguro (o nascimento de Jesus) é circundado por uma série de particulares incertos, senão improváveis, começando pelo lugar do nascimento, que para o papa é, obviamente, a tradicional Belém, enquanto "a maioria dos estudiosos duvida que Jesus nasceu em Belém" (The Cambridge Companion to Jesus, p. 22), e um exegeta católico Raymond Brown chegou a falar de "provas positivas em favor de Nazaré".

Os Evangelhos, portanto, não são confiáveis? Não, são dignos de confiança, mas contanto que se diferenciem neles diversos níveis de historicidade, isto é, de dados historicamente seguros, dados prováveis e dados improváveis. Em particular, os evangelhos da infância são uma interpretação do significado existencial de Jesus, para cuja manifestação o relato do seu nascimento foi enriquecido por uma série de elementos simbólicos, como era normal na antiguidade para os grandes personagens. Tudo isso ao longo dos séculos serviu para atrair a atenção sobre Jesus, porque no passado a humanidade identificava a presença do divino com os milagres e o extraordinário. Hoje, no entanto, ocorre o contrário. Hoje, os milagres e o extraordinário são mais de dano do que de ajuda para a autêntica comunicação espiritual. Chegamos a uma visão de mundo mais pacata, mais desencantada, mais realista; aos frisos do barroco, prefere-se a austera simplicidade do romantismo.

Essa maior maturidade se reflete no trabalho da exegese bíblica mediante o método histórico-crítico, um trabalho sério e altamente qualificado, como nunca antes havia acontecido na história, um trabalho de porte internacional e interconfessional cujos resultados se oferecem à consciência sem forçações dogmáticas.

Ratzinger, porém, não gosta do método histórico-crítico; considera-o prejudicial para a fé e, talvez por isso, no seu livro, ele nem menciona o autor do estudo mais importante sobre os evangelhos da infância, o já citado Raymond Brown, sacerdote católico, por muito tempo membro da Pontifícia Comissão Bíblica.

Brown conclui assim a sua obra monumental sobre os evangelhos da infância: "Qualquer tentativa de harmonizar as narrações a ponto de fazer delas uma história coerente está fadada ao fracasso" (La nascita del Messia [O Nascimento do Messias], Assis, 1981, p. 677).

Ratzinger nem menciona Brown, mas justamente por isso a sua obra, apesar de algumas belas páginas de corte espiritual, vai ao encontro do destino prefigurado pelo grande biblista norte-americano.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012


Fonte IHU

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A hipótese do papiro falso

Na semana passada, uma estudiosa norte-americana, Karen King, da Universidade de Harvard, apresentou em Roma um fragmento de papiro copta, com uma antecipação em Nova York no jornal New York Times, adquirida – segundo o que foi afirmado – de um colecionador que quer manter o anonimato, em que Jesus dizia: "Minha esposa... e ela poderá ser minha discípula"...

A reportagem é de Marco Tosatti, publicada no sítio Vatican Insider, 26-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Naturalmente, só a alusão a uma possível esposa de Jesus, nos EUA da era Obama, imediatamente se tornou interessante. Embora não o fosse no tempo de Jesus: Pedro era casado, e havia também uma tradição muito viva no judaísmo de célibes dedicados a Deus.

Mas agora um estudioso britânico, Francis Watson, da Universidade de Durham, lança a hipótese de que nos encontramos diante de uma falsificação, ou ao menos de um papiro "construído". Francis Watson, especialista no campo e que, aparentemente, tem no seu currículo a descoberta de outros documentos supostamente históricos e que mais tarde se revelaram falsos, defende que o texto foi construído. E o argumenta em seis páginas de elaboração disponíveis aqui [em inglês].

"Karen King admite um ceticismo inicial – escreve Watson –, mas agora está convencida de que esse fragmento de papiro deriva de uma cópia do século VI de um texto do século II. Vou argumentar aqui que o ceticismo é exatamente a atitude certa. O texto foi construído a partir de pequenos pedaços – palavras ou frases – derivados principalmente do evangelho copta de Tomé, seções 101 e 114, e postos em um novo contexto. Mais provavelmente, trata-se do procedimento de composição de um autor moderno que não é um falante nativo de copta".

Obviamente, é impossível, por razões de espaço, acompanhar Watson na análise passo a passo, que parte do Evangelho de Tomé encontrado em Nag Hammadi, em 1945, cujo texto é acessível a todos. Ele afirma que, no curto fragmento, estão presentes frases (particularmente a fórmula: "Os discípulos disseram a Jesus") que morfologicamente não aparecem nos quatro evangelhos canônicos, mas pertencem ao Evangelho de Tomé.

Permanecem, no entanto, sempre válidas todas as possíveis interpretações dessa "minha esposa" que criou tanto interesse. A "esposa" poderia ser a Igreja, como no livro do Apocalipse e na tradição cristã de dois milênios. Poderia ser, como no Cântico dos Cânticos, a alma do homem em busca de Deus. Poderia ser, na tradição gnóstica, o discípulo que busca a perfeição.

Em suma, não se pode afirmar que Jesus estava falando da "senhora Jesus", mesmo que – e Watson afirma que não – o fragmento do século IV fosse um fragmento autêntico de sabe-se lá o quê. É preciso lembrar ainda que, na realidade, essa tese de um Jesus casado está bem presente na tradição Ahmadiya, que afirma que Cristo foi curado com unguentos milagrosos depois da crucificação, fugiu com Madalena e se estabeleceu definitivamente na Caxemira, onde ainda hoje pode-se ver o seu túmulo e talvez encontrar os seus descendentes.

Para ler mais:

Fonte IHU

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As mulheres de Jesus de Nazaré

Oito linhas num papiro do século IV, de um hipotético “Evangelho da mulher de Jesus”, voltou a colocar em cena não apenas o estado civil de Cristo, mas também sua relação com a outra metade do céu.

A reportagem é de Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 23-09-2012. A tradução é do Cepat.

O que Jesus pensava das mulheres? Que papel as mulheres ocuparam em sua vida e, sobretudo, em seu movimento? O que consideram os mais sérios exegetas católicos sobre “Jesus e as mulheres”?

Apesar de ser o personagem mais estudado e analisado pela cultura ocidental, Jesus continua sendo um dos mais desconhecidos. Pouco se sabe com exatidão sobre o homem que é venerado por um bilhão de pessoas como o “Filho de Deus”. Séculos de manipulações apagaram as escassas pistas sobre sua realidade.

E os Evangelhos? Tradicionalmente nos são apresentados como textos históricos. Hoje, todos os teólogos reconhecem que a partir deles não se pode escrever uma biografia de Jesus.“O Evangelho é um testemunho dos crentes. O que os evangelistas contam não é história, mas expressão de sua fé em Jesus Cristo”, explica o prestigioso e já falecido teólogo holandês Edward Schillebeeckx.

Embora sendo difícil, a exegese moderna está demarcando cada vez mais a figura de Jesus. Inclusive nos aspectos mais fechados ou silenciados pela Igreja católica oficial. Por exemplo, a questão da sua sexualidade ou de seu estado civil.

Jesus de Nazaré foi casado?

Para a Igreja católica o assunto da sexualidade de Jesus foi sempre um tabu. A doutrina oficial só aborda esse tema para dizer que Jesus foi um homem de verdade, com todas as pulsões de um homem, mas que se manteve puro e celibatário em toda a sua vida.

Inclusive, em muitas ocasiões dá a sensação de que a Igreja católica cai no docetismo (a heresia que torna Jesus não um homem real, de carne e osso, mas um ser que, embora tendo aparência humana, era na realidade “outra coisa”) na hora de “limpar” a figura do Nazareno.

De acordo com a mais estrita ortodoxia católica, Jesus era um homem completo, de corpo inteiro e, consequentemente, sexuado. Deus se fez homem, e dentro dessa condição existe a sexualidade. Como a exerceu? Que relação manteve com as mulheres?

Os grandes exegetas concordam em negar que Jesus tivesse casado. E que o celibato transgredia as leis religiosas de sua época. “Quem não tem mulher é um ser sem alegria, sem a bênção, sem felicidade, sem defesas contra a concupiscência, sem paz; um homem sem mulher não é um homem”, diz o Talmude. E menos ainda, se esse homem era um rabi, um intérprete da Lei que, portanto, não podia se opor ao Talmude.

Um dos mais prestigiosos exegetas espanhóis, Xabier Pikaza, acaba de publicar o “Evangelho de Marcos. A Boa Notícia de Jesus” (Verbo Divino), um exaustivo estudo de 1.200 páginas. E sobre este tema conclui assim: “Não se pode demonstrar, de maneira absoluta, que Jesus foi celibatário”.

Alguns pesquisadores supõem que ele poderia ter sido viúvo ou sem filhos. Outros, mais fantasiosos, falam de suas relações com Maria Madalena ou de sua abertura afetiva mais aberta (um tipo de “amor” estendido para homens e mulheres, de forma não genital). Enfim, outros asseguram que, após a vinda do Reino (se houvesse chegado, sem que tivesse sido morto), Jesus teria casado, iniciando um matrimônio diferente...

Porém, não sabemos nada disso. Nada pode ser apoiado em fontes. A única coisa certa é que durante o tempo de sua pregação, a partir de sua missão com João, passando por sua mensagem na Galileia, até a sua morte foi “celibatário”.

Outro famoso teólogo espanhol, Rafael Aguirre, sustenta a mesma tese. Ou como disse o americano John Paul Meier: “Jesus nunca se casou, o que o torna um ser atípico e, por alcance, marginal diante da sociedade judaica convencional”. Nisso sim, todos os exegetas consentem, além de destacar o papel “especial” de Maria Madalena na vida de Jesus.

Ela não foi sua mulher, mas esteve muito perto dele. No grupo de mulheres que acompanhavam Jesus e seus discípulos, nunca está ausente. É a primeira receptora dos acontecimentos pascais. Por isso, é chamada “a apóstola dos apóstolos”.

“No entanto, casá-la com Cristo é um disparate”, afirma o teólogo jesuíta Juan Antonio Estrada. O disparate do “Código Da Vinci”, por exemplo, que muitos acreditam.

Discípulas e companheiras de Jesus

O que está claro em todos os textos evangélicos, canônicos e apócrifos, é que a sua relação com as mulheres foi um dos aspectos mais revolucionários do profeta de Nazaré.

Jesus rompe com todos os tabus, numa sociedade em que a mulher era definida como uma “lua”, porque só brilhava e recebia tudo do “sol”, que era o homem. “Dou-te graças, Senhor, por não me haver feito mulher”, rezavam os varões todas as manhãs, pois a mulher era um ser inferior.

Por isso, andava sempre com a cabeça coberta, não podia parar na rua para falar com um varão, não podia ser testemunha credível num julgamento, tampouco podia ter herança e no caso de que seu marido morresse, passava a ser propriedade de seu irmão. E, é claro, quando estava menstruada, não somente era impura, mas tornava impuro tudo o que tocava.

Jesus rompe com todas as tradições culturais de seu tempo e trata a mulher como igual”, explica Pikaza. De fato, as mulheres fazem parte de seu círculo mais íntimo, de seus mais estreitos colaboradores e acompanham o profeta itinerante em suas caminhadas apostólicas. “Varões e mulheres aparecem num projeto como iguais, sem prioridade de um sexo sobre o outro”, sustenta o exegeta espanhol.

E o catedrático Antonio Piñero, em seu livro “Jesus e as mulheres” (Aguilar), aponta que “Jesus foi um rabino relativamente anômalo no cenário dos mestres da Lei do século I, porque teve um ministério ativo, no qual as mulheres não apenas estavam presentes, mas eram discípulas”.

De fato, o Evangelho de Marcos diz que as mulheres “serviam” a Jesus. E o biblista argentino Ariel Álvarez explica que “se estas mulheres “serviam” a Jesus, é porque de alguma maneira pregavam o Evangelho, curavam enfermos, expulsavam demônios e realizavam as mesmas funções dos demais discípulos, e não porque cumpriam exclusivamente as tarefas de cozinha e limpeza”.

É que, como diz Pikaza, “Jesus não quis sacralizar a sociedade patriarcal de sua época” e “fundou um movimento de varões e mulheres na contramão dos rabinos de sua época, que não admitiam as mulheres em suas escolas”. Jesus não somente as acolhe, mas escuta e dialoga com elas, “como com pessoas livres”, respeitando e valorizando-as em igualdade com o homem.

Mais ainda, Pikaza sustenta que dentro de seu movimento, as mulheres foram as seguidoras mais fiéis e radicais de Jesus. “De fato, ao chegar à prova da Cruz, os doze lhe abandonaram; elas, ao contrário, permanecem fiéis até o final”.

Um Jesus, portanto, profundamente inclusivo, que desafia frontalmente os preceitos patriarcais profundamente estabelecidos. Em seu trato com a mulher, Jesus foi um revolucionário, um profeta que desafiou o legalismo confuso e inerte que mesclava a vida religiosa e social de seu tempo. Um visionário defensor dos direitos da mulher. Inteiramente um feminista.

terça-feira, 18 de setembro de 2012


Manter viva a causa do PT: para além do “Mensalão”

                                    Leonardo Boff*

Há um provérbio popular alemão que reza: “você bate no saco mas pensa no animal que carrega o saco”. Ele se aplica ao PT com referência ao processo do “Mensalão”. Você bate nos acusados mas tem a intenção de bater no PT. A relevância espalhafatosa que o grosso da mídia está dando à questão, mostra que o grande interesse não se concentra na condenação dos acusados, mas através de sua condenação, atingir de morte o PT.

De saída quero dizer que nunca fui filiado ao PT. Interesso-me pela causa que ele representa pois a Igreja da Libertação colaborou na sua formulação e na sua realização  nos meios populares. Reconheço com dor que quadros importantes da direção do partido se deixaram morder pela mosca azul do poder e cometeram irregularidades inaceitáveis. Muitos sentimo-nos decepcionados, pois depositávamos neles a esperança de que seria possível resistir às seduções inerentes ao poder. Tinham a chance de mostrar um exercício ético do poder na medida em  que  este poder reforçaria o poder do povo que assim se faria participativo e democrático. Lamentavelmente houve a queda. Mas ela nunca é fatal. Quem cai, sempre pode se levantar. Com a queda não caiu a causa que o PT representa: daqueles que vem da grande tribulação histórica sempre mantidos no abandono e na marginalidade. Por políticas sociais consistentes, milhões foram integrados e se fizeram sujeitos ativos. Eles estão inaugurando um novo tempo que obrigará  todas as forças sociais a se reformularem e também a mudarem seus hábitos políticos.

Por que muitos resistem e tentam ferir letalmente o PT? Há muitas razões. Ressalto  apenas duas decisivas.

A primeira tem a ver com uma questão de classe social. Sabidamente temos elites econômicas eintelectuais das mais atrasadas do mundo, como soia repetir Darcy Ribeiro. Estão mais interessadas em defender privilégios do que garantir direitos para todos. Elas nunca se reconciliaram com o povo. Como escreveu o historiador José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma no Brasil 1965,14) elas “negaram seus direitos, arrasaram sua vida e logo que o viram crescer, lhe negaram, pouco a pouco, a sua aprovação, conspiraram para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que continuam achando que lhepertence”. Ora, o PT e Lula vem desta periferia. Chegaram democraticamente ao centro do poder. Essas elites tolerariam Lula no Planalto, apenas como serviçal, mas jamais como Presidente. Não conseguem digerir este dado inapagável. Lula Presidente  representa uma virada de magnitude histórica. Essas elites perderam. E nada aprenderam. Seu tempo passou. Continuam conspirando, especialmente, através de uma mídia e de seus analistas,  amargurados por sucessivas derrotas como se nota nestes dias, a propósito de uma entrevista montada de Veja contra Lula. Estes grupos sepropõem apear o PT do poder e  liquidar  com  seus líderes.

A segunda razão está em seu arraigado conservadorismo. Não quererem mudar, nem se ajustar ao novo tempo. Internalizaram a dialética do senhor e do servo. Saudosistas, preferem se alinhar de forma agregada e subalterna, como servos,  ao senhor que hegemoniza a atual fase planetária: os USA e seus aliados, hoje todos em crise de degeneração. Difamaram a coragem de um Presidente que mostrou a autoestima e a autonomia do país, decisivo para o futuro ecológico e econômico do mundo, orgulhoso de seu ensaio civilizatório racialmente ecumênico e pacífico. Querem um Brasil menor do que eles para continuarem a ter vantagens.

Por fim, temos esperança. Segundo Ignace Sachs, o Brasil, na esteira das políticas republicanas inauguradas pelo do PT e que devem ser ainda aprofundadas, pode ser a Terra da Boa Esperança, quer dizer, uma pequena antecipação do que poderá ser a Terra revitalizada, baixada da cruz e ressuscitada. Muitos jovens empresários, com outra cabeça, não sedeixam mais iludir pela macroeconomia neoliberal globalizada. Procuram seguir o novo caminho  aberto pelo PT e pelos aliados de causa. Querem produzir autonomamente para o mercado interno, abastecendo os milhões de brasileiros que buscam um consumo necessário, suficiente e responsável e assim poderem viver um desafogo com dignidade e decência. Essa utopia mínima é factível. O PT  se esforça por realizá-la. Essa causa não pode ser perdida em razão da férrea resistência de opositores  superados porque é sagrada demais pelo tanto de suor e de sangue que custou.

*Leonardo Boff é teólogo, filósofo, escritor e dr.h.causa em politica pela Universidade de Turim por solicitação de Norberto Bobbio.

 




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quinta-feira, 26 de julho de 2012

A Teologia da Prosperidade em questão

A reportagem é de Jérôme Anciberro, publicada na revista Témoignage Chrétien, 23-07-2012, reproduzida pelo IHU-Unisinos.
O princípio é simples: você dá 10 euros (à sua Igreja, aos pobres...), proclama a sua fé e receberá mil (ou será curado do câncer). Nestes tempos de crise, pode-se entender que esse investimento interesse mais do que uma pessoa. Ainda mais que seria garantido por Jesus em pessoa, que no Evangelho de Marcos (10, 29-30) afirma que "quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de mim e da Boa Notícia, vai receber cem vezes mais, agora, durante esta vida […] E, no mundo futuro, vai receber a vida eterna".
Essa "lei do cêntuplo" é uma das bases bíblicas da teologia da prosperidade, sobre a qual se baseiam algumas Igrejas evangélicas independentes nascidas da influência pentecostal. O movimento, em que se reconheceria cerca de 20% dos cristãos norte-americanos, nasceu nos EUA nos anos 1950 e se desenvolveu ao longo dos anos 1970, graças a alguns pastores carismáticos, muitas vezes fundadores das suas próprias Igrejas independentes.
Pouco a pouco, ela se espalhou por todo o mundo, particularmente na Ásia (especialmente na Coreia do Sul) e na África, e preocupa seriamente os primeiros interessados, isto é, os próprios evangélicos. Na França, certas Igrejas ou "missões" ligadas a representantes da teologia da prosperidade vão pregar em "cruzadas-relâmpago", como o norte-americano Benny Hinn, que promete milagres e curas em quantidade.

Idolatria do dinheiro
Nos EUA, pastores-estrela de tendência evangélica como Rick Warren ou Jerry Falwell (1933-2007) sempre falaram muito claramente para denunciar aquilo que consideram, juntamente com muitos outros, como uma verdadeira idolatria do dinheiro. Ao elaborar e divulgar, no mês passado, um estudo sério sobre o assunto, o Conselho Nacional dos Evangélicos Franceses (CNEF) definitivamente se distanciou dessa teologia, falando de "ingenuidade assombrosa com relação ao pecado e à sua ação na vida do fiel", de "uma forma moderna de idolatria", de "um pensamento mágico" ou ainda de "uma paganização da fé"...
O texto, de cerca de 30 páginas, é fruto do trabalho do comitê teológico do CNEF, no qual estão representadas todas as suas correntes teológicas, dos batistas às Assembleias de Deus, dos "biblistas" aos pentecostais... Ele foi aprovado por unanimidade pelos delegados das uniões das Igrejas e das obras, reunidos em assembleia plenária no dia 22 de maio passado.
"É um trabalho em equipe", explica Thierry Le Gall, diretor de comunicação do CNEF. "Absolutamente não se visa a dar instruções – não somos um Vaticano evangélico! – mas sim a expor um ponto de vista teológico de fundo que, sem dúvida, merecia ser tornado público".
A teologia da prosperidade, explicam os teólogos do CNEF, está em perfeito acordo com uma ideologia contemporânea ao mesmo tempo hedonista e antropocêntrica. Tudo, de algum modo, é "instrumentalizado ao serviço da prosperidade, incluindo a obediência a Deus e a generosidade cristã. [...] A concepção do ser humano o torna um pequeno deus, que age como lhe agrada".
Por exemplo, encontram-se relacionadas com o documento algumas citações desarmantes retiradas de teologias da prosperidade, como aqueles "Vocês são deuses!" de Robert Tilton, um célebre tele-evangelista norte-americano. Essa busca pela eficiência a todo custo pode ter consequências psicológicas pesadas: "Todo o peso do eventual fracasso dessas promessas recai sobre o fiel que nelas esperou, rezou, doou", lembra o CNEF. "É impossível, nesse sistema, pôr em questão as promessas de partida. Culpa-se quem ´não recebeu´ por causa da sua falta de fé, de quem serão descobertas as menores falhas".
Acima de tudo, a teologia da prosperidade proporia uma "concepção errônea da fé". E o texto do CNEF afirma: "Toda concepção da fé que imporia a Deus a sua própria decisão ou ação [...] é semelhante à ´oração dos pagãos´, que conta não com Deus, mas com a própria eficácia da oração humana, da sua formulação ou da sua repetição".
A reportagem é de Jérôme Anciberro, publicada na revista Témoignage Chrétien, 23-07-2012, reproduzida pelo IHU-Unisinos.

sábado, 30 de junho de 2012

Se um dia formos a minoria - Leia é interessante
               Autor: desconhecido. Recebido pela Internet.

Volta e meia nos perguntam a respeito de uma suposta grande perda de
fiéis por parte da Igreja Católica.
Essa perda existe mesmo? Devemos nos preocupar com isso? Por quê?
Poucas semanas após ser eleito Papa (abril/2005), numa de suas
primeiras aparições públicas, Bento XVI ouviu de um jornalista a
seguinte pergunta: “O senhor está preocupado com a perda de fiéis pela
Igreja nos últimos anos?”. Consta que o Sumo Pontífice encarou seu
interlocutor com firmeza e respondeu calmamente: “A Igreja não perdeu
nenhum fiel. Aqueles que se foram nunca foram fiéis católicos
realmente. Não se pode perder o que nunca se teve. Os que deixaram a
Igreja eram indecisos, curiosos ou pessoas que estavam apenas
‘cumprindo uma obrigação’ passada por seus pais ou avós. Os que vêm e
vão não pertencem ao Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja na Terra.
Da mesma maneira, os que são católicos, mas ainda não estão na Igreja,
infalivelmente chegarão ou retornarão a ela no devido tempo. A Igreja,
Casa e Família de Deus, surgiu como um pequeno grupo; não importa a
quantidade, e sim a qualidade dos seus filhos, como cristãos
conscientes e santificados”.

_______A resposta causou admiração. Alguns entenderam a coerência na
resposta do Papa e passaram a admirá-lo a partir dali. É bem possível
também que outros tenham se escandalizado, imaginando que fora uma
afirmação presunçosa. Mas os verdadeiros católicos, – exatamente
aqueles a quem o Pontífice se referiu, – compreenderam bem e
perceberam, naquela ocasião, que este seria um grande Papa, um líder
enviado pela Providência Divina a um mundo complicado, num momento
delicado. João Paulo II era respeitado pelo mundo todo, até por
muçulmanos. Alguns esperavam que sua morte causaria um esmorecimento,
mas as Missas presididas por Bento XVI reúnem ainda mais fiéis que as
de João Paulo, segundo dados oficiais do Vaticano.
_______A afirmação de Bento XVI é realista. Podemos tomar um exemplo,
para efeito de comparação: imagine uma pessoa que visita a sua casa.
Essa pessoa pode frequentar a sua residência ou, por qualquer motivo,
até morar nela por algum tempo; mas depois retoma o seu próprio
caminho e se vai. Essa pessoa, por ter frequentado a sua casa, faz
parte da sua família? Basta estar junto a uma família para fazer parte
dela? Não.
_______São muitos os que frequentam a Igreja por algum tempo:
“assistem” às Missas e até ajudam em algum grupo ou pastoral. Depois
se indispõem com o padre ou com algum membro da comunidade e vão
embora sem olhar para trás. Não era por Cristo que estavam ali.
Estavam ao lado das pessoas, mas não estavam verdadeiramente unidas a
essas pessoas, e muito menos a Deus. Não eram irmãos, nem amigos; eram
“conhecidos”. Quando um conhecido se sente contrariado, ele se vai,
porque não há ligação. Entre verdadeiros irmãos é diferente.
Principalmente quando são irmãos não por laços de sangue, mas de alma.
Irmãos porque comungam da mesma fé, da mesma história, porque creem no
mesmo Deus e nos mesmos valores, têm uma mesma missão e compartilham
dos mesmos princípios. Caminham juntos e unidos, não para “agradar” um
ao outro, nem para “aparecer” ou se sociabilizar apenas, mas porque
creem em Algo Maior, que é seu Deus e Pai. Amam esse Deus e sabem que
Ele é a Fonte da Vida e de todas as Graças. Não abandonam sua casa por
nada.
_______Se alguém caminhou junto com o Povo de Deus por um tempo, mas
nunca comungou dessa União sagrada de fato, e de repente começa a
frequentar outra “igreja”, e logo passa a difamar a Igreja Católica,
este é um “fiel” que a Igreja “perdeu”? Não. São pessoas que nunca
aprofundaram sua fé, mas ao integrar outra comunidade são rápidos em
afirmar que “encontraram Jesus” por lá. Que bom seria se de fato
encontrassem Jesus, porque os verdadeiros católicos já o encontraram
há muito tempo.
_______Há um exemplo curioso num fórum de discussão evangélico da
internet. Um participante, autodenominado “Mehid”, deixa o seguinte
depoimento: “Meu vizinho dá testemunhos nas igrejas evangélicas, se
dizendo ‘ex-católico’, mas eu nunca o vi na igreja católica, em
celebração alguma! Vejo ‘crentes’ dizendo barbaridades, usando sempre
aquela afirmação: ‘quando eu era católico...’. Mas a minha tia assiste
ao programa da Igreja Mundial, e ela disse que muitas pessoas vão dar
testemunhos e citam outras igrejas evangélicas, justificando que não
se sentiam bem nelas, até entrar na Mundial, e aí tudo ficou lindo nas
suas vidas. Mas agora lá é proibido citar outras igrejas evangélicas,
porque as citadas começaram a reclamar. Só da católica pode falar”.
_______“Então, muitos dizem que saíram da Igreja Católica porque não
encontraram Jesus lá, mas eles entram numa igreja evangélica e depois
pulam para outra. Se entram numa igreja evangélica porque Jesus está
lá, por que saem dessa igreja e pulam para outras igrejas? Será que
Jesus pula de igreja em igreja, e as pessoas vão pulando com ele? Se a
errada é a católica, por que quando a pessoa ‘se converte’ fica
pulando de igreja, feito macaco sem galho?”.
_______Seria engraçado, se não fosse triste. Por isso, católicos, não
nos preocupemos: se um dia formos a minoria, seremos minoria com
Cristo.

domingo, 8 de abril de 2012

A MANSÃO DOS MORTOS


Bruno Glaab

Introdução:

Com o presente estudo vamos abordar um dito de nosso Credo: “Desceu à Mansão dos Mortos”. Como texto base de nosso estudo vamos analisar 1Pd 3,19-20. Em relação com este texto, veremos outros textos que, até certo ponto fazem eco com o texto referido. Veremos como habitualmente se entende esta doutrina, em nosso catecismo, no discurso do Papa e num estudo exegético do referido texto em autores que analisam o mesmo texto.

1) Bases fundantes: 1Pd 3,18-20; 1Pd 4,6;

Com efeito, também Cristo morreu uma vez pelos
pecados, o justo pelos injustos, a fim de nos conduzir a Deus. Morto na carne,
foi vivificado no espírito, no qual foi
também pregar aos espíritos em prisão, a saber, aos que foram incrédulos outrora,
nos dias de Noé, quando Deus, em sua longanimidade, contemporizava com eles,
enquanto Noé construía a arca, na qual poucas pessoas, isto é, oito, foram
salvas por meio da água (1Pd 3,18-20).

Eis que o evangelho foi pregado também aos mortos, a fim de que sejam julgados
como os homens na carne, mas vivam no espírito, com Deus (1Pd 4,6).


2) Catecismo da Igreja Católica (CIC)

O CIC nos diz: “Desceu aos infernos”, “Morada dos mortos”,
“Profundezas da morte” (CIC, 632-634). Ao descer aos infernos Jesus teria
resgatado aqueles que jaziam mortos, mas não contemplavam a visão de Deus:

“São precisamente essas almas santas, que esperavam o
seu Libertador no seio de Abraão, que Jesus libertou ao descer aos infernos.
Jesus não desceu aos infernos para ali libertar os condenados, nem para
destruir o Inferno da condenação, mas para libertar os justos que o haviam precedido”
(CIC 633).

Desta forma, segundo o CIC, a ação salvífica de Jesus se
estendeu a todos os seres humanos e, de todos os tempos. “O Cristo morto, na sua alma unida à sua
pessoa divina, desceu à Morada dos Mortos. Abriu as portas do Céu aos justos
que o haviam precedido” (CIC 637).

3) Bento XVI

Bento XVI, falando sobre o assunto, diz:

Ele encontra Adão e todos os
homens que esperam na noite da morte. À sua vista parece até ouvir a oração de
Jonas: “Clamei a vós do meio da morada dos mortos, e ouvistes a minha voz” (Jn
2,3). O Filho de Deus na encarnação fez-se uma só coisa com o ser humano – com
Adão. Mas só naquele momento, em que
cumpre o extremo ato de amor descendo na noite da morte, Ele cumpre o caminho
da encarnação. Com a sua morte Ele leva Adão pela mão, leva todos os homens
em expectativa para a luz.
Contudo, agora, pode-se
perguntar: Mas o que significa esta imagem? Que novidade realmente aconteceu
ali através de Cristo? Sendo a alma do homem por si própria imortal desde a
criação, qual foi a novidade que Cristo trouxe?
Sim, a alma é imortal, porque o homem de forma
singular está na memória e no amor de Deus, mesmo depois da sua queda. Mas a
sua força não basta para elevar-se até Deus. Não temos asas que poderiam
levar-nos até aquela altura. Porém, nada pode contentar o homem eternamente, se
não o estar com Deus.
Uma eternidade sem esta união com Deus seria
uma condenação. O homem não consegue chegar ao alto, mas deseja-o: “Clamei a
vós…” Só o Cristo ressuscitado pode
elevar-nos até à união com Deus, onde nossas forças não podem chegar.
Ele carrega realmente a
ovelha perdida sobre os seus ombros e a leva para casa. Vivemos sustentados
pelo seu Corpo, e em comunhão com o seu Corpo alcançamos o coração de Deus. E
só assim a morte é vencida, somos livres e nossa vida é esperança. (http://blog.
opovo.com.br/ancoradouro/jesus-desce-a-mansao-dos-mortos-por-bento-xvi/)

4 - Pré-Compreensão

Certamente estamos diante de um
texto misterioso, ainda não devidamente esclarecido pela exegese bíblica.
Segundo alguns autores, 1Pd 3,18-22 seria um hino litúrgico. O s vv.18-22 não
seriam originais, pois misturam prosa e poesia (THEVISSEN, 1999, p.63).
Tradicionalmente se costuma
pregar que, descendo Jesus ao Xeol/Hades[1],
teria oferecido sua graça salvífica também àqueles que viveram antes da
encarnação do Verbo, ou que não conheceram a Jesus, aqui representados por
aquelas pessoas desobedientes que viveram nos tempos da construção da arca de
Noé. Inclusive, esta é também a visão do Catecismo da Igreja Católica.

A proclamação de Cristo aos espíritos encarcerados,
que tinham sido desobedientes nos dias de Noé (1Pd 3,19), significa que sua
vitória foi aplicada àqueles que viveram e atuaram no tempo do Antigo Testamento.
Tal afirmação contém elementos imaginários, mas representa uma intuição cristã
de que a vitória de Cristo afetou não somente aqueles que o seguiram
temporariamente, mas também os que o precederam – uma universalidade temporal
como parte da teologia de que todos são salvos por intermédio de Cristo (BROWN,
2004, p.941).

Imaginava-se, então, que os mortos possuíssem uma existência
subterrânea, no Xeol/Hades. Lá estavam todos os desobedientes, representados
pelos desobedientes dos tempos de Noé. A estes, Jesus foi pregar a
possibilidade do arrependimento, transformando o Hades em campo missionário
(CHAMPLIN, 1983, p.147). Os rabinos judaicos pregavam que os desobedientes do
dilúvio eram a pior classe. Não mereciam nenhuma comiseração. Significavam perda
total. Segundo 1Pd 3,19-20 Jesus supera estas visão estreita do judaísmo
rabínico (MUELLER, 1988, p.211).
Mas, de acordo com a tradição comum, fica uma dúvida: o que Jesus teria
feito na sua descida à mansão dos mortos? Alguns autores supõe duas
possibilidades:
1)
Razões salvíficas: a partir do século II se
entende que a descida à mansão dos mortos seria mesmo para dar uma segunda
chance aos que estavam no limbo. Anunciar que o céu agora estava aberto (Evangelho
de Pedro, Justino, Orígenes). No entanto, é estranho que nas referências feitas
à descida à mansão dos mortos, ou aos infernos, a partir do século II até III,
nunca se mencione 1Pd 3,19-20. Parece que os teólogos de então tenham outras
fontes para se referir à mansão dos mortos, ou infernos (MUELLER, 1988, p.208).
2)
Razões condenatórias: alguns questionam que a
pregação seja feita aos espíritos encarcerados e não aos mortos. Quem seriam
estes espíritos encarcerados? Anjos ou seres humanos falecidos? No contexto do
judaísmo tardio e do Novo Testamento, dificilmente espíritos seriam pessoas falecidas, mas, antes, anjos decaídos
(MUELLER, 1988, p.209). Poderiam ser os anjos que se comportaram mal com as
filhas dos homens (Gn 6,1-4) desencadeando o dilúvio. O v, 19 é difícil e tem
duas interpretações: a) espíritos
seriam seres sobre-humanos: anjos decaídos, b) espíritos seriam mortos, incrédulos, aqui representados pelos
incrédulos dos tempos de Noé, como também em 1Pd 4,6 (THEVISSEN, 1999, p.63).
Inclusive, havia a crença de que, depois da morte o ser humano continuaria a
viver em espírito, no céu, no inferno e no ar (MUELLER, 1988, p.209). Mas, se encararmos
a primeira hipótese, então perceberemos que esta visão de anjos decaídos está
muito presente na cosmovisão do Novo Testamento. Os maus anjos foram presos em
um poço sob a terra à espera do julgamento. Encontramos isto em alguns Apócrifos,
como no livro de 1 Henoc, como também em Jd 8, em 2Pd 2,10, e inclusive no Ap
12,7ss). Neste caso, Jesus teria ido até eles para lhes anunciar sua vitória sobre
as forças do mal e acabar com sua força satânica. Isto se parece com Jo 16,11,
onde a morte de Jesus representa o julgamento do príncipe deste mundo, bem como
Ap 12,5-13, onde a vitória de Jesus prostra satanás e seus anjos por terra
(BROWN, 2004, p.933). No livro de 1Henoc (apócrifo) se diz que o mesmo foi
encarregado para ir aos anjos decaídos e lhes anunciar sua condenação definitiva. Jesus seria o novo
Henoc que teria ido anunciar aos caídos, a condenação deles e a vitória total
de Cristo.

Cristo, portanto, é
apresentado como aquele que depois de sua ressurreição anuncia aos anjos
caídos, instigadores do mal neste mundo, sua vitória sobre o mal e a condenação
deles. Deste então os anjos maus perderam seu poder (THEVISSEN, 1999, p.66).

Os
espíritos, no contexto da época, então podem ser vistos como anjos, humanos,
demônios ou até seres divinos, mas no nosso contexto, deve-se supor, apesar das
dificuldades, tratar-se de seres humanos desincorporados (CHAMPLIN, 1983,
p.148). Porém, também os anjos decaídos são colocados nos abismos, onde
aguardam julgamento:

Com efeito, se Deus não
poupou os anjos que pecaram, mas lançou-os nos abismos tenebrosos do Tártaro[2],
onde são guardados à espera do juízo, nem poupou o mundo antigo, mas ao trazer
o dilúvio sobre o mundo dos ímpios... (2Pd 2,4-5).

Quanto aos anjos que não
conservaram o seu principado, mas abandonaram a sua morada, guardou-os presos em
cadeias eternas, sob as trevas, para o juízo do grande dia (Jd 6).

A
mesma figura se percebe em Ap 20,7 quando, depois de mil anos, o diabo é solto
de seu cárcere, ou ainda, na visão do rico opulento que, preso no Hades que contempla
o pobre no seio da Abraão (Lc 16,22ss). Mas neste caso, trata-se de um falecido
no Hades e não um anjo.


5 – Uma Cosmovisão dos tempos
Bíblicos

Uma hipótese apresentada por
Schökel (BÍBLIA do Peregrino, 2002, p. 2910), diz: nos tempos bíblicos
acreditava-se na existência do Xeol, isto é, um mundo subterrâneo e tenebroso
onde os mortos ficavam numa situação semelhante aos fantasmas de nossos
folclores. Aí se encontram os infiéis dos tempos de Noé. Jesus foi anunciar, também
a estes, a remissão, ou estender a eles a sua graça.
O julgamento dos infiéis era
entendido como acontecido numa masmorra: “Serão todos amontoados como
prisioneiros na masmorra e só depois de muito tempo terão de acertar as contas”
(Is 24,21-23). Mas aí ficam algumas perguntas:
-
O cárcere é lugar de espera?
-
Jesus anuncia a libertação ou a condenação, como já vimos acima?
-
Jesus os visita em estado intermediário, ou já glorificado? Seria entre a
sexta-feira e o domingo da páscoa, ou já seria o glorificado? Se pensarmos no
quarto evangelho, poderíamos pensar que a hora da glória de Jesus é na cruz (Jo
12,23ss). Neste caso já seria o glorificado. Mas 1Pd diz: “No qual também foi
pregar aos espíritos...”, ou seja, “morto na carne, vivificado no espírito” foi
pregar aos espíritos (1Pd 3,18). Fica uma questão: seria Jesus morto antes de
ressuscitar, ou já seria o ressuscitado?
-
Os espíritos respondem de forma positiva ou negativa a Jesus?
O Sl 22,30 nos diz: “Diante dele
se prostrarão as cinzas da tumba, em sua presença se curvarão os que descem ao
pó”. Em Fl 2,10 se diz: “Diante do nome de Jesus, todo joelho se dobre, no céu,
na terra e no abismo...” Mas este prostrar-se quer dizer aceitação, ou
reconhecimento de que estão definitivamente derrotados?

No Novo Testamento há vestígios
deste abismo, abaixo da terra, de onde Jesus teria remido os pecadores. Assim
em Romanos e em Efésios se aponta para o fato de Cristo descer aos abismos:
“Ou quem descerá ao abismo? Isto
é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos” (Rm 10,7).
“Que significa subiu, senão que
também desceu às profundezas da terra? O que desceu é também o que subiu acima
de todos os céus, a fim de plenificar todas as coisas” (Ef 4,9-10).
Desta forma, Jesus retirou de lá
os santos mortos. Isto aparece no relato da morte de Jesus na cruz, quando os
mortos ressuscitam e vão passear na cidade de Jerusalém (Mt 27,52). Em Ef 4,8
se diz que com esta descida e subida Jesus retirou os mortos de seus túmulos:
“tendo subido às alturas, levou cativo o cativeiro”. Em Fl 2,9-10 Paulo afirma
que o despojado Jesus recebeu um Nome, diante do qual todo joelho se dobre,
inclusive os debaixo da terra. Isto parece um reconhecimento forçado. Em Cl
2,15 ele afirma que Jesus venceu os anjos abaixo da terra, despojando-os e
derrotando-os. “Na qual (cruz) ele despojou os Principados e as Autoridades,
expondo-os em espetáculo, levando-os em cortejo triunfal”.
O pensamento antigo imaginava o
mundo em três níveis: Os céus (morada de Deus), a terra (morada dos humanos) e
o mundo subterrâneo, debaixo do qual se localizava o Xeol/Hades. Ir ao Xeol,
muitas vezes é sinônimo de morrer. O
Xeol é um fosso, um lugar de trevas, vermes e pó” (MCKENZIE, 1983, p.972).
Um apócrifo, chamado Ascensão de
Isaías, em seu capítulo 9,16 diz que Jesus, antes de ressurgir, despojou o anjo
da morte, obrigando que os anjos de satanás tivessem de adorá-lo. Em livros
como Odes de Salomão, Melitão de Sardes, etc. se ilustra cenas como, Jesus,
antes da ressurreição abriu a porta da região onde estavam os mortos, que então
começaram a correr ao seu encontro. Derrotou o homem forte e resgatou as
pessoas aí cativas. O Evangelho de Nicodemos narra a descida de Jesus ao
inferno para resgatar os santos do Antigo Testamento (BROWN, 2004, p.931).
Na Revolta de Coré, Datã e Abiram (Nm 16) a terra se abre e os rebeldes
descem vivos para a região dos mortos com suas famílias e com seus pertences.
Eles foram para o terrível lugar das trevas. Este local tem semelhança com o
mito acádico da descida de Ishtar ao mundo inferior.

O mundo inferior é descrito como a casa escura...a
terra de onde não há retorno, da qual não há caminho para voltar, onde os que
entram são privados de luz, onde o pó é
sua comida e a lama sua alimentação, onde eles não veem a luz” (MCKENZIE, 1983,
p.972).

Assim sendo, o Xeol é a negação
total da vida. Javé não se lembra dos que estão no Xeol, nem os do Xeol lembram
de Javé. O Xeol é lugar onde também os poderosos são reduzidos ao nada. Até o
poderoso rei da Babilônia terá seu fim nele:

Nas profundezas, a mansão dos mortos se agita por sua
causa, prepara para você uma recepção; para você, ela desperta os mortos, todos
os dominadores da terra, e faz todos os reis das nações levantar-se de seus
tronos. E todos eles falam, perguntando: ‘também você foi derrubado como nós, e
ficou igual a nós?’ O esplendor dele foi atirado na sepultura, junto com a
música de suas harpas. Debaixo de você há um colchão de podridão, seu cobertor
é feito de vermes” (Is 14,9-11).

Aqui o Xeol é o fim de tudo, a destruição total, ou então, a
condenação ao aniquilamento. No judaísmo tardio esta concepção muda. Agora o Xeol
seria apenas um lugar de espera até a justificação. “Oxalá me guardasses
escondido no túmulo, até que passe a tua ira e marcasses um prazo para te
lembrares de mim” (Jó 14,13). Aqui talvez já esteja uma centelha de uma
esperança de remissão. Pois na origem, o Xeol não é somente o castigo dos maus,
mas também dos bons. Ele é a sorte de uns e de outros. No Novo Testamento,
muitas vezes, o Xeol, ou Hades é visto como lugar de castigo para os maus, e
mais tarde o conceito de Xeol evolui para a geena, lugar de fogo, ou para nós,
inferno. O rico opulento de Lc 16,19-31 está no Hades e isto é, no inferno. Mas
outras vezes, Xeol não é sinônimo de inferno, como é o caso do discurso de
Pedro no dia de Pentecostes:

Deus, porém, o ressuscitou,
livrando-o das dores do Hades. Não era mesmo possível que fosse retido em seu
poder; pois Davi diz a seu respeito: Sem cessar via o Senhor diante de mim,
está à minha direita, para que eu não vacile. Alegrou-se, por isso o meu
coração, e minha língua jubilou; minha carne repousará com esperança, porque
não deixarás minha alma no Hades. Nem deixarás que teu santo experimente a
corrupção (At 2,24-27).

Em 1Cor 15,55 se diz
que a morte (Hades) é vencida por Jesus. Nesta visão, ainda há esperança para
os que já morreram, bem como também em 1Pd 4,6 se afirma que Jesus foi pregar
aos mortos (CHAMPLIN,1983, p.148). “Para levar o tempo à sua plenitude: a de em
Cristo recapitular todas as coisas...” (Ef 1,10). Pedro recebe as chaves da
igreja e as portas do Hades não prevalecerão (Mt 16,16)[3].
O Ressuscitado tem as chaves do Hades (Ap 1,18). O Hades e a morte são muito
bem ilustrados no Apocalipse:

O mar devolveu os mortos que nele jaziam, a Morte e o
Hades entregaram os mortos que neles estavam, e cada um foi julgado conforme
sua conduta. A Morte e o Hades foram então lançados ao lago de fogo. Esta é a
segunda morte: o lago de fogo (Ap 20,13-14).

Esta
visão também é encontrada no judaísmo tardio. Vê-se o Hades como lugar
temporário, à espera do julgamento. O Ressuscitado é o vencedor do Hades (MCKENZIE,
1983, p.973). Xeol/Hades é um sinônimo de infernos
e não para o inferno (singular).
Assim, há os infernos (para onde Jesus desceu) e o inferno (sorte dos
condenados). O inferno dos condenados é sorte definitiva e os infernos, dos que
esperam a visita Jesus, quando desceu aos infernos, é lugar de espera pelo
julgamento definitivo.

As portas dos infernos para onde Cristo desceu
abriram-se para deixar escapar os seus cativos, ao passo que o inferno onde
desce o condenado se fecha atrás dele para sempre. Contudo, a palavra é a
mesma, não por um acaso nem por uma aproximação arbitrária, mas em virtude duma
lógica profunda e como expressão de uma verdade capital. Os infernos como o
inferno são o reino da morte, e, sem Cristo, haveria no mundo um único inferno
e uma única morte, a morte eterna, a morte na posse de todo o seu poder”
(DUFOUR, 1987, p.442).

Assim sendo, Jesus,
com sua descida aos infernos, destruiu a mansão dos mortos, ou os infernos, mas
não o inferno. Por isto existe uma segunda morte (Ap 21,8). Esta é a sorte dos
que não auferiram da graça de Cristo, ou seja, isto é o inferno. Pela descida
de Jesus aos infernos, estes deixaram de ser O Inferno. Os infernos são uma imagem do que seria o mundo
sem a presença de Cristo (DUFOUR, 1987, p.442). Sem Cristo, os infernos seriam
o inferno. Champlin, no entanto, julga que a salvação trazida por Jesus, não
termina na hora da morte, mas que ainda há esperança de salvação pela aceitação
do evangelho de Jesus depois da morte (1983, p.154).

6 -
Conclusão

É
difícil compreender o conceito de descida aos infernos e o que ele foi pregar
aos espíritos cativos, outrora desobedientes (1Pd 3,19s), contudo se pode ver
neste texto a morte de Jesus e de sua vitória sobre a morte, pois segundo o
discurso de Pedro, Deus o livrou das dores do Hades (At 2,24.31).
Seriam,
então, os versículos 19 e 20 uma resposta para todos os que não puderam ouvir o
evangelho em vida? Ou simplesmente se quer dizer que Jesus alcançou os piores
entre os piores? Ou ainda, a graça dele é total, isto é, literalmente para
todos?
Ele
subiu aos céus depois de ter descido à região dos mortos, o que talvez possa ser entendido como a solidariedade com todos os
seres humanos que precisam passar por esta etapa da existência humana (Ef 4,9s;
Rm 10,6-10), vivos e também mortos.

A obra da salvação do Senhor
é evento que compreende todas as esferas do mundo e tornou realidades juízo e
graça de Deus. Cristo é a Testemunha fiel, o mártir que apregoa a todos os
seres o feito da Redenção, também aos inimigos de Deus (SCHWANK, 1984, p.106).

A
morte de Cristo foi o triunfo sobre a morte (1Cor 15,26). Ele fez com que a
morte devolvesse seus mortos (Ap 20,13 e Mt 27,52s). Antes de Cristo, os
infernos eram definitivos, ninguém podia sair de lá. Mas, pela morte de Cristo,
primícias daqueles que morreram (1Cor 15,20-33) e primogênito entre os mortos
(Ap 1,5) as portas dos infernos se abriram.
Como,
no entanto, antes da vinda de Cristo, este já é prometido, o ser humano que
aceita a Deus já vê um raio de esperança em suas trevas infernais que se tornam
realidade com a morte de Jesus. Ao contrário, os que se fecham à graça dele,
serão condenados ao fogo eterno (1Ts 1,8; Ap 20,14s).
Entre
as muitas possibilidades aventadas, preferimos ficar com uma ideia de Thevissen
(1999, p.66): Descer à mansão dos
mortos, nada mais seria, do que o anúncio da vitória final de Jesus sobre o
mal. Os adversários de Cristo: homens incrédulos, como anjos maus, estão
definitivamente derrotados. O cristianismo não foi derrotado com a morte de
Jesus na cruz, mas esta serviu para proclamar a grande vitória.
Para
cristãos em crise (1Pd 3,13ss) como nos tempos de Noé cabia uma admoestação:
eles devem empenhar-se para evangelizar os adversários, os maus, pois assim
como nos tempos de Noé, também agora, Jesus não desistiu de nenhum deles (MUELLER,
1988, p.212).



BIBLIOGRAFIA

BÍBLIA , do Peregrino. São Paulo:
Paulus, 2002
BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo testamento. São
Paulo: Paulinas, 2004
CATECISMO da Igreja Católica.
Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulinas/Loyola/Ave-Maria, 1993
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado – versículo por versículo. São
Paulo: Milênium, 1983, vol.6
DUFOUR, Xavier León. Vocabulário de Teologia Bíblica. Perópolis:
Vozes, 1987
MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo:
Paulinas, 1983
MUELLER, Ênio. 1Pedro – Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova/Mundo
Cristão, 1988
SCHWANK, B. A Primeira Epístola de Pedro, Apóstolo. Petrópolis: Vozes, 1984
THEVISSEN, G. et al. As Cartas de Pedro, João e Judas. São
Paulo: Loyola, 1999, Col. Bíblica Loyola, Vol.7B



[1]
Xeol é palavra hebraica e Hades é o correspondente Grego.
[2]
Tártaro era a personificação do Mundo Inferior. Nele estavam as cavernas e
grutas mais profundas e os cantos mais terríveis do reino de Hades, o mundo dos
mortos, para onde todos os inimigos do Olimpo eram enviados e onde eram
castigados por seus crimes. Lá os Titãs foram aprisionados por Zeus (Júpiter),
Hades (Plutão) e Poseidon (Netuno) após a Titanomaquia. Na Ilíada, de Homero,
representa-se este mitológico Tártaro como prisão subterrânea 'tão abaixo do
Hades quanto a terra é do céu'. Segundo a mitologia, nele eram aprisionados
somente os deuses inferiores, Cronos e outros titãs, enquanto que os seres
humanos eram lançados no submundo, chamado de Hades (Wikipedia).
[3]
A nota a da Bíblia de Jerusalém a Mt 16,18, diz: “Quanto a Hades (hebr. Sheol),
que designa a morada dos mortos cf. Nm 16,33+. Aqui, as suas portas, personificadas
evocam as potências do Mal que depois de terem arrastado os homens à morte do
pecado, os encadeiam definitivamente na morte eterna. Seguindo seu Mestre que
morreu, ‘desceu aos Infernos’ (1Pd 3,19+) e ressuscitou (At 2,27.31), a Igreja
deverá ter por missão arrancar os eleitos ao império da morte temporal e,
sobretudo, eterna, para condusi-los ao Reino dos Céus (cf.Cl 1,3; 1Cor 15,26;
Ap 6,8; 20,13).