quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Um Deus anônimo

                                                 Leonardo Boff

26/12/2012
Como homem, Jesus é como todos os homens: um trabalhador, carpinteiro como seu pai, José e um camponês mediterrâneo. Nem super-herói nem um especialmente piedoso que chamasse a atenção.
Era um homem de vila, tão pequena, Nazaré, que nunca é citada em todo o Antigo Testamento, talvez com uns 15 casas, não mais. Participou do destino humilhante de seu povo, subjugado pelas forças de ocupação militar romana. Nenhum documento da época falou dele, fora dos evangelhos. Não era conhecido nas rodas nem de Jerusalém e muito menos de Roma.
Como diz ironicamente o poeta Fernando Pessoa, Jesus não tinha biblioteca e não consta que entendesse de contabilidade. Ele é um anônimo no meio da massa do povo de Israel.
O fato de ter sido a encarnação do Filho de Deus não mudou em nada essa humilde situação. Deus quis se revelar nesse tipo de obscuridade e não apesar dela. E precisamos respeitar e aceitar esse caminho escolhido pelo Altíssimo.
A lição a se tirar é cristalina: qualquer situação, por humílima que seja, é suficientemente boa para encontrar Deus e para acolhermos a sua vinda nos labores cotidianos.
Jesus, disse São Paulo, não se envergonhou de ser nosso irmão. E efetivamente é nosso irmão, não só porque quis se revestir de nossa humanidade, mas é nosso irmão, principalmente por ter participado de nossa vida cotidiana, tediosa, sem brilho e renome, a vida dos anônimos.
Disso tudo tiramos essa singela lição: a vida vale a pena ser vivida assim como é – diuturna, monótona como o trabalho do dia-a-dia – e exigente na paciência de conviver com os outros, ouvi-los, compreendê-los, perdoá-los e amá-los assim como são.
Ele ainda é nosso irmão maior, enquanto dentro desta vida de luz e de sombra, viveu tão radicalmente sua humanidade a ponto de trazer Deus para dentro dela, um Deus próximo, companheiro de caminhada, energia escondida que não nos deixa desesperar face aos absurdos do mundo.
Por isso, precisamos, a despeito de tantos pensadores desesperados e céticos reafirmar: o Cristianismo não anuncia a morte de Deus. E, sim, a humanidade, a benevolência, a jovialidade e o amor incondicional de Deus. Um Deus vivo, criança que chora e ri e que nos revela a eterna juventude da vida humana perpassada pela divina.
Leonardo Boff
Semana do Natal, 26/12/2012.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012




Fonte IHU
Notícias » Notícias

A terceira ''religião'' do mundo

Se a religião é realmente o ópio dos povos, perdemos esta também, já que o culto em ascensão no mundo leva o nome de ateísmo. Sim, um em cada seis pessoas sobre a Terra é sem Deus: ou ao menos não acredita no Deus de uma Igreja particular. E a Igreja dos sem fé já é a terceira da aldeia global.

A reportagem é de Angelo Aquaro e publicada no jornal La Repubblica, 19-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A primeira é a dos cristãos: 2,2 bilhões de pessoas. A segunda é uma mesquita: os muçulmanos são 1,6 bilhão. Ao terceiro lugar do pódio, portanto, sobem os não crentes: 1,1 bilhão.

O que acontece? Depois de conhecer uma sociedade sem pais, como haviam profetizado os sociólogos há 60 anos, decidimos também aposentar o Pai Eterno?

Na verdade, o quadro oferecido pelos pesquisadores do Pew, o instituto de pesquisas mais prestigiado dos Estados Unidos, é um pouco mais complexo, assim como demanda o assunto. Tanto é que a definição que os estudiosos propõem para os ateus do Terceiro Milênio é a mais flexível: unaffiliated, que poderia ser traduzida como não adeptos, aqueles justamente que não participam ativamente em um culto. Uma não Igreja muito mais do que variada.

"Os não adeptos incluem os ateus, os agnósticos e aqueles que não se identificam com nenhuma religião particular", lê-se nas 81 páginas dessa The Global Religious Landscape. Mas os autores do relatório logo se adiantam: para unir também as mãos desses bem-aventurados não adeptos. Muitos deles, de fato, "têm alguma forma de crença religiosa". O que isso significa? Que, "por exemplo, a fé em Deus ou em um poder qualquer é compartilhado por 7% dos chineses, por 30% dos franceses e por 68% dos norte-americanos", sempre na categoria "unaffiliated".

E mais: "Alguns deles participam de algum modo de certas práticas religiosas. Por exemplo, 7% na França e 27% nos Estados Unidos revelam presenciar um serviço religioso ao menos uma vez por ano". Isso naturalmente não basta para considerá-los crentes: muitas vezes, por exemplo, a participação está ligada a ritos também civis, como casamentos e funerais. Ou ao menos aquele sentimento que muito raramente os leva à igreja, à mesquita, à sinagoga, ou também ao menos aquilo que é classificado mais como busca do espírito do que sentido religioso propriamente dito.

Obviamente, as curiosidades não faltam. Ainda com relação aos não adeptos, trata-se de 16% da população mundial: a mesma porcentagem dos católicos. Três quartos vivem na Ásia: segue a Europa (12%, 134,8 milhões), a América do Norte (5%, 59,04 milhões) e o resto. Entre as grandes religiões, os hindus seguem o cristianismo e o Islã com 1 bilhão de fiéis; os budistas com meio bilhão; e os judeus, com 12 milhões. A religião do amanhã parece ser o Islã: os muçulmanos têm a média de idade mais jovem, 23 anos; judeus e budistas, a mais alta, 36.

No total, os crentes são 84% da população mundial: calculada em 2010, ano da pesquisa, 5,8 bilhões.

O professor Conrad Hackett, um dos pilares do estudo, disse ao New York Times que "é a primeira vez que os números se baseiam em uma pesquisa analisada de modo rigoroso e científico": 2.500 fontes em 232 países. Pode ser. No entanto, olhando bem, falta uma seita: com 1,01 bilhão, aquele ópio da web chamado Facebook já não superou os amigos hindus?

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012




FONTE IHU


Quarta, 12 de dezembro de 2012

Bento XVI, o Jesus histórico e a ''função insubstituível'' da exegese. Entrevista com Aristide Serra

Há 40 anos, ele estuda os Evangelhos da infância. Aristide Serra, padre servita, biblista do Marianum, tem a curiosidade do estudioso e a paixão do enamorado. Maria de Nazaré e a história do seu Filho ainda o estimulam, há 75 anos, a buscar pistas e concordâncias nos textos antigos, entre hebraico, grego, latim.

A reportagem é de Vittoria Prisciandaro, publicada na revista italiana Jesus, n. 12, de dezembro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Por isso, questionamo-lo a propósito do último livro de Bento XVI, A infância de Jesus, publicado pelas editoras Rizzoli e Livraria Editora Vaticana. O livro do pontífice, lançado no dia 21 de novembro, simultaneamente em nove línguas e em 50 países, leva a termo a trilogia iniciada em 2007 (Jesus de Nazaré) e que continuou em 2011 (Jesus de Nazaré. Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição).

"O último livro do papa não acrescenta nada de novo do ponto de vista científico", explica o padre Serra. "O Santo Padre se baseia em estudos de biblistas do passado e do presente que tratam dos Evangelhos da infância. A verdadeira nota característica é o estilo pastoral com o qual Bento XVI acompanha o leitor ao encontro com Jesus".

Serra cita em particular algumas expressões que lhe chamaram a atenção, visando a mostrar a relevância do discurso evangélico. Por exemplo, a comparação entre as duas anunciações – a de Zacarias e a de Maria – e o comentário do papa diante do contraste entre os dois cenários: "De um lado, o sacerdote, o Templo, a liturgia; de outro, uma jovem mulher desconhecida, uma pequena cidade desconhecida, uma desconhecida casa privada. O sinal da Nova Aliança é a humildade, o escondimento: o sinal do grão de mostarda. O Filho de Deus vem na humildade".

E depois acrescenta: "Desde o nascimento, Ele não pertence àquele ambiente que, segundo o mundo, é importante e poderoso. Mas justamente esse homem irrelevante e sem poder se revela como o verdadeiramente Poderoso. Portanto, faz parte do tornar-se cristão o fato de sair do âmbito daquilo que todos pensam e querem...".

Passando para a leitura do texto, Serra não se isenta e se refere ao convite feito por Bento XVI no primeiro volume da trilogia: "Este livro não é de modo algum um ato magisterial, mas é unicamente expressão da minha busca pessoal do 'rosto do Senhor'. Por isso, cada um é livre para me contradizer".

Eis a entrevista.

Sob essa ótica, como estudioso, o que o senhor integraria ao livro sobre a infância?

Permita-me fazer um destaque sobre as fontes elencadas na bibliografia. Se tirarmos as Bucólicas de Virgílio, contam-se 20 autores alemães, quatro franceses, um espanhol e um italiano, um texto divulgativo do cardeal Ravasi. A produção italiana, riquíssima na matéria, é completamente ignorada. O mesmo pode se dizer sobre a produção inglesa. Não se cita, por exemplo, Raymond Edward Brown, que escreveu uma obra fundamental dedicada ao nascimento de Jesus. O banquete é empobrecido.

A intenção do papa é demonstrar que o Jesus dos Evangelhos é precisamente o Jesus histórico: o que está escrito realmente aconteceu. Uma leitura da qual a moderna exegese histórico-crítica se distancia. O que o senhor pensa?

Os Evangelhos são textos históricos, compostos, porém, segundo as regras aplicadas naquele tempo no âmbito judaico para escrever a história. Menciono dois desses critérios. O primeiro é a contínua referência aos livros do Antigo Testamento, para atestar que Jesus veio não para abolir, mas sim para levar à perfeição a história que preparou a sua vinda. Juntamente com o Antigo Testamento, é preciso conhecer a vasta literatura judaica que comentava e atualizava esses escritos normativos para o povo de Israel. Eis, então: as obras de Filão de Alexandria, Flávio Josefo, os textos da comunidade de Qumran, os midrashîm, ou seja, comentários aos livros bíblicos por obra dos mestres de Israel, o Talmud... Essa série de escritos bíblicos e parabíblicos representam o mundo cultural em que viviam os autores dos Evangelhos.

O segundo critério, fundamental, é a Páscoa do Senhor. Em outras palavras, Mateus e Lucas transmitem recordações da infância de Jesus, interpretadas, porém, à luz da sua Ressurreição. Jesus manifestou a sua identidade plena ressuscitando dos mortos. Por isso, a Páscoa se refere ao Natal, e Natal é compreendido a partir da Páscoa. Compreende-se, nesse ponto, a função insubstituível da chamada "exegese histórico-crítica". Ela busca nos fazer compreender o texto evangélico, situando-o no mundo cultural do qual nasceu há cerca de 2.000 anos. Esgotada essa operação, entra em cena a hermenêutica, ou seja, a resposta à pergunta sempre atual: hoje, qual mensagem transmite a nós um escrito tão antigo? O livro de Bento XVI é visivelmente percorrido por essa preocupação tipicamente pastoral.

A virgindade de Maria também deve ser lida sob esta luz?

A propósito da virgindade de Maria, o papa escreve:" Parece-me normal que, só depois da morte de Maria, o mistério [do nascimento virginal] pudesse se tornar público e entrar na comum tradição do cristianismo nascente". Sobre esse assunto, eu teria uma posição um pouco diferente. Estou inclinado a pensar que a Páscoa também foi o epicentro da questão mariana, no que se refere à concepção virginal de Jesus.

Explico-me: a Ressurreição de Cristo foi anunciada segundo diversas abordagens na pregação apostólica. Um desses módulos refere-se à Ressurreição de Jesus considerada como uma "geração-parto-nascimento". O túmulo de Jesus se configurou quase como um "ventre" a partir do qual o Pai, mediante a força do Espírito Santo, gerou o Filho à vida incorruptível e eterna. No evento da Páscoa, não agiu uma força humana, mas unicamente uma energia divina. Do ventre do túmulo de Jesus, a Igreja foi induzida a se perguntar de que modo a humanidade de Jesus apareceu no outro ventre, o da sua mãe terrena, Maria, que vivia na comunidade de Jerusalém, como contam os Atos.

Nesse ponto, Maria, solicitada pela Igreja apostólica, tornou-se testemunha das "grandes coisas" realizadas pelo Poderoso no evento da encarnação. Assim percebeu-se a conexão entre o ventre "novo" do túmulo de Jesus (Mt 27, 60; Lc 23, 53; Jo 19, 41) e o ventre "virgem" de Maria (Mt 1, 18.20; Lc 1, 35). Assim teve origem o trecho evangélico da Anunciação (Lc 1; 26-38). Logo a Igreja descobriu a conexão existente entre o renascimento virginal da ressurreição e o nascimento virginal da encarnação.

Os pastores, os reis magos, a estrela: como distinguir o fato da sua interpretação?

Não é preciso ir aos extremos: tudo parábola ou tudo história. Se aproximarmos os textos com discernimento paciente, seremos capazes de jogar uma discreta luz sobre a linha de demarcação entre "fato" e "interpretação do fato". Obviamente, diversos detalhes do relato, conhecidos aos destinatários do Evangelho, continuam para nós envoltos na penumbra do enigma. Em todo caso, tenhamos em mente – e o papa se refere a isso várias vezes – que os eventos da infância de Jesus têm como fonte de informação a sua própria família, com referência privilegiada a Maria, sua mãe.

Ela – atesta Lucas duas vezes – "guardava todas essas coisas no seu coração". É de notável importância o fato de que, segundo o ensinamento da Escritura, a "memória" também é ordenada à "transmissão" dos fatos recordados. O exemplo típico são os pastores. Talvez – assim pensava o conhecido biblista alemão Joachim Jeremias – fossem os proprietários da caverna-gruta que viu o Natal do Senhor.

Mas o que conta, acima de tudo, é o fato de que Lucas vê nesses pastores uma antecipação de outros pastores: os futuros pastores da Igreja, isto é, os apóstolos, que, juntamente com os seus colaboradores, anunciam a ressurreição do Senhor. É por demais evidente a influência da Páscoa! Os pastores de Belém, segundo a pena de Lucas, tornam-se evangelizadores.